Juliana Santana, Dra. em Ética e Filosofia Política.
Quais limites separam um
texto literário de um texto filosófico? Esta pergunta permeia o pensamento
humano ocidental ao menos desde que entre os gregos instituiu-se uma forma
diferenciada de saber e de discursar sobre certas questões a qual se
convencionou chamar, ao que tudo indica desde Pitágoras de Samos, Filosofia.
A partir de então buscou-se,
como o fez, por exemplo, Aristóteles em sua Poética delimitar contornos
específicos para a filosofia e a poesia. O filósofo afirma que não seria o fato
de se escrever em versos o que faria de alguém um poeta. Mais de dois milênios
mais tarde, Jean-Pierre Vernant em seu As origens do pensamento grego buscou
explicar por que razões o poeta Hesíodo não fora o primeiro dos filósofos
gregos.
Para nós, o fato é que tais
explicações têm sua validade, porém não põem fim ao problema em tela. Os liames
entre Filosofia e Literatura são muito menos precisos do que se gostaria e a pergunta
se nos afigura como uma interrogação realmente filosófica. Por tal motivo
dedicaremos as breves linhas que seguem a esboçar uma consideração sobre a
filosofia que entendemos estar presente nas páginas da obra do escritor mineiro
João Guimarães Rosa. Acenaremos para tal possibilidade pensando no caráter
universal, problemático e teórico conceitual que costuma-se defender como sendo
distintivo das questões propriamente filosóficas e que entendemos serem
aspectos presentes igualmente nos escritos de Rosa. A despeito do cenário
mineiro apresentado em muitas das páginas literárias de Sagarana, a primeira
coletânea de contos rosiana mostra para o mundo questões que poderiam bem
figurar dentro de um compilado de problemas filosóficos. Não obstante, temas
que fustigam e mente humana há milênios são ali representados também sob uma potente
forma poética. A título de exemplo, podemos citar questões como aquelas sobre a
morte e a vida presentes no conto que inaugura o livro, O burrinho pedrês, mas igualmente
aparecem em A hora e a vez de Augusto Matraga, estória que o fecha.
Em ambos os escritos é
possível entender tais assuntos como representados pelas águas correntes dos
rios que são descritos nas estórias e que estão direta e simbolicamente associados
à passagem, à travessia da vida para a morte. Em Rosa o tema por vezes remete à
mitologia e à Literatura grega, como no caso de A hora e a vez de Augusto
Matraga, que se refere em especial à Odisseia, de Homero, Canto X. O assunto é
igual e inegavelmente percebido em outras das publicações do mineiro, como em A
terceira margem do rio, estória que consta entre aquelas que compõem o volume Primeiras
estórias. A despeito do exemplo literário primeiramente mencionado, entendemos que
a questão tenha cunho filosófico especialmente por se mostrar como insolúvel,
como algo que assola toda e qualquer mente humana, mais ou menos hora. Ademais,
a forma pela qual o próprio Rosa trata-a confirma nossa aposta: “[...] o que me
interessa, na ficção, primeiro que tudo, é o problema do destino, sorte e azar,
vida e morte”. Sendo assim, Rosa manifesta seu interesse por questões universais,
aproximando-se do trato propriamente filosófico dispensado a tais inquietações,
ainda que se referindo à ficção. Apesar de não se apresentar exata e
explicitamente como uma forma de filosofar, a poética do escritor também pode
ser tomada como tal ao fazer elaborações a respeito das emoções, em particular
do amor. Este tema é frequente na escrita de Rosa, assim como salienta Benedito
Nunes ao analisar Grande sertão: veredas
no primeiro capítulo de seu livro A Rosa o que é de Rosa.
Assim como outros tantos
estudiosos, percebemos que o tema que movimenta as mais variadas formulações de
teóricos da Filosofia aparece em vários dos escritos de Rosa. Este expõe o amor
de forma variegada e inquietante, apontado novamente para o aspecto aberto da
discussão quando se trata de tentar definir a emoção em questão. Os amores de
Riobaldo por Diadorim, por Otacília e por Nhorinhá, bem como aqueles amores
sentidos por Primo Ribeiro e Primo Argemiro por Luísa em Sarapalha são exemplares
de como o amor é algo multifacetado e por isso desperta a curiosidade humana,
levando a tecer páginas e páginas argumentativas ou poéticas no intuito de entender
ou ao menos de se manifestar sobre o assunto que se mostra como problemático.
Para finalizar esta curta
reflexão, retomemos a vida e a morte como constituintes de um problema
universal, como algo que assola os homens em todas as épocas e lugares.
Acreditamos que em Rosa elas apareçam tanto literária quanto filosoficamente desenhadas.
Isso porque, retornando ao aspecto conceitual com o qual alguns distinguem a
Filosofia, encontramos aí mais um motivo para afirmarmos que há filosofia em
Rosa. A fim de defender tais afirmações, findamos esta breve consideração com
as mais que famosas linhas de Grande sertão: veredas, quando, a nosso ver, o escritor
aborda a vida de modo quase conceitual. Ela é apontada como aflitiva e preciosa,
desassossegada e com laivos de calmaria. É plena em conflitos que sinalizam a riqueza
e as possibilidades da existência humana, mas isto exige um posicionamento
firme e corajoso frente a todas as suas intempéries. É assim que Rosa traz para
nós a fórmula quase aforística pela qual entendemos que conceitua a vida: “O
correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí
afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem” . Pensamos
que seria difícil a qualquer forma de filosofar elaborar uma concepção mais
complexa, completa e eficaz sobre o tema, sinalizando a validade da nossa
proposta de uma filosofia contida na obra de João Guimarães Rosa. Sendo assim,
como resposta para a pergunta que colocamos no início desta discussão, entendemos
que, no caso da obra de Rosa, Literatura e Filosofia se amalgamam de forma
singular, sendo indiscerníveis. Não há como definirmos onde começa a Filosofia
e termina a Literatura de João Guimarães Rosa. O que podemos é apenas afirmar
que ambas estão presentes ali, perfeitamente associadas.