quinta-feira, 23 de maio de 2024

Bauman e o desafio das vidas desperdiçadas. José Mauricio de Carvalho

 



 

A tese de que a Europa moderna produziu excedentes populacionais que foi anunciada em Amor líquido foi retomada e aprofundada por Zygmunt Bauman no livro Vidas desperdiçadas. A novidade é que nesse último livro o assunto ganhou dramaticidade por que a sobra demográfica foi comparada a lixo humano (BAUMAN, 2005, p. 12): “a produção de refugo humano, ou mais propriamente, de seres humanos refugados (os excessivos e redundantes (...), é um produto inevitável da modernidade, e um acompanhamento inseparável da modernidade.” E assim, em nosso tempo, com o esgotamento da solução moderna entramos numa crise sobre como alocar esse entulho, porque o planeta já não tem locais livres para acolhimento ou formas de fazer a reciclagem desse processo. O atual processo produtivo não tem um número tão grande de empregos para a todos ocupar em toda parte.

Então, na ausência de meios de vida nessas ex-colônias da Europa, que acolhiam as sobras humanas daquele continente em outros dias, vemos iniciar um movimento de retorno para os países de origem, pois nessas antigas colônias também não há meios disponíveis para ocupar esse excesso de pessoas desocupadas. Há ainda o problema de guerras entre Estados artificialmente criados. De tal forma que um regresso dessa gente, por guerras ou miséria, acirra as dificuldades da sociedade consumista e hedonista, também ela necessitando dar solução para excessos demográficos (id., p. 14): “os problemas do refugo humano e da remoção do lixo humano pesam ainda mais fortemente sobre a moderna e consumista cultura da individuação.” Como se vive essas dificuldades?

A primeira consequência dessa situação é a falta de emprego para as populações, tanto nos países mais ricos como nos pobres, resultando em quadros depressivos graves para jovens que não encontram postos de trabalho adequados. Assim, a juventude dos anos 70 (id., p. 18): “experimenta sofrimentos que eram desconhecidos das gerações anteriores.” Eles chegam a um mercado de trabalho onde não há espaço para trabalhadores sem experiência, resultando em conselhos para não serem exigentes na procura pelo emprego e a ficarem felizes com qualquer oportunidade, sem considerar a vocação de cada um ou seu projeto de vida. A baixa-estima e a depressão emergem nesse contexto e pioram com comentários como (id., p. 20): “os outros não necessitam de você. Podem passar muito bem, e até melhor, sem você. Não há uma razão autoevidente para você existir nem qualquer justificativa óbvia para que você reivindique o direito à existência.” E como essas pessoas não têm meios de sobreviver acabam recebendo alguma ajuda do Estado, não sem contestação crescente da parcela que trabalha e que, fechada no próprio egoísmo, sente menos a necessidade de construir uma sociedade solidária e a toda proposta nesse sentido é chamada de comunismo.

A perda da autoestima ou o abandono de um projeto singular de vida é o que a geração X, nascida nos anos 70, experimenta como coisa própria, independente de quão difícil tenha sido a vida de seus antepassados. E a depressão também é alimentada porque esses jovens se sentem colocados fora do ônibus do progresso e do desenvolvimento. Eles não esperam emprego duradouro e a falta de regras do mundo do trabalho aumenta a ansiedade. Para as gerações anteriores, mesmo sendo mal pagas e enfrentando dificuldades, essa insegurança não existia. Na pior das hipóteses havia uma reserva de trabalhadores para suprir as necessidades de mão de obra, mas nada como a atual realidade (id., p. 23): “as preocupações da geração X – preocupações quanto à redundância – diferem dos problemas vivenciados e registrados pelas gerações anteriores, e são sofridas e enfrentadas à sua maneira própria e singular.”

O problema atual é a indefinição, não se sabe o que fazer, para onde ir. Não se tem certeza de um caminho para superar a condição de refugo, o que antes se tinha claro. Desde o que fazer até como proceder para voltar ao mercado. Isso significa que (id., p. 25): “o mais importante é que, para qualquer um que tenha sido excluído e marcado como refugo, não existem trilhas obvias para retornar ao quadro de integrantes.” A noção de refugo significa que aquilo que foi posto fora do espaço visível não mais pertence ao mundo que conta, não há comparação com o desempregado de algum tempo que, apesar das dificuldades, sabia o caminho da volta pelo trabalho.

Diante dessa realidade, o uso da razão, o debate livre e sem ódio de ideias, a recusa da radicalização política e da mentira como sua propaganda; a procura real para os problemas mencionados, o compromisso com a verdade, a defesa do estado de direito e da democracia, a valorização da ciência, da filosofia, da razão, são os melhores meios de enfrentamento dessas dificuldades que a vida de hoje nos apresenta.

 

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