A hipertrofia do legislativo
José Mauricio de Carvalho
O noticiário nacional vem, há alguns meses, comentando um certo mal-estar dos políticos (leia-se deputados e senadores) com os juízes, em especial com o STF. Como entender um embate inadequado e inconstitucional quando temos em vista que a Constituição Brasileira, em seu artigo 2º, estabelece que o Poder do Estado Brasileiro é exercido por três poderes, que, embora independentes, devem atuar harmônicos entre si. A Carta Constitucional diz que são três poderes da União: o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Claro que os avanços do legislativo sobre os atributos do judiciário são contrários à Tripartição dos Poderes consagrada expressamente pela Constituição atual. A Constituição Nacional, para assegurar os fundamentos da democracia, estabeleceu como cláusula pétrea, em seu artigo 60, § 4º, III, que: “Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: [...] a separação de poderes” (BRASIL, 1988).
Durante a história recente não foi raro os inimigos da democracia recusarem a tripartição de poderes e já assistimos ditadores fecharem os parlamentos e controlarem os juízes. Isso voltou a moda, como dito em O enigma do inconsciente e a força da subjetividade. Porto Alegre: MKS, 2022, p. 24), quando: “nas primeiras décadas do século XXI, devido à instabilidade, a insegurança, a imprevisibilidade, o medo alimentaram o reaparecimento de governos da extrema-direita.” Vimos despontar comportamentos que marcaram os primeiros anos do século passado. Um exemplo clássico do que tivemos, no século XX, foi a forma de atuação de Adolf Hitler. Ele controlou os outros dois poderes para praticar o que vou denominar de antirrazão, anticiência e outras barbáries. E para que ele quis controlar os outros poderes? Para fazer o que não seria possível noutra condição, como a tese da superioridade da raça ariana. De nada adiantou os cientistas alertarem para o erro, os protestos da sociedade organizada, o ditador afastou os que não concordavam com suas ideias e colocou na universidade quem admitia essa tese. E fez coisas pior. Apesar dos protestos, sempre há alguém que obedeça ao ditador para gozar dos benefícios do poder. Isso vimos recentemente médicos defenderem o uso da cloroquina para trata a COVID 19, quando todos os institutos de pesquisa sérios diziam o contrário.
E qual o pano de fundo dessa atual disputa? O estudos de Zygmunt Bauman ajudam a compreender as crises econômicas recentes com repercussão na organização dos Estados. A questão ganhou forma nessa sociedade que foi descrita por diversos autores, como, alegoricamente, 'leve', 'líquida' e 'fluida'. O que isso significa? Que a sociedade atual se ajustou ao processo de globalização da economia sem manter aspectos, práticas e valores reconhecidos pelo Estado de Direito. Não restaram estruturas ou fatores estruturantes, disse Bauman, a sociedade funciona como um líquido que assume a forma do recipiente. O diálogo com o passado ficou fraco, especialmente com os valores porque a vida que se tinha não cabe dentro dos novos desafios da economia globalizada, Estado fraco e reduzido à delegacia de polícia.
Tendo esse pano de fundo, diversos governantes pelo mundo procuraram intimidar o poder judiciário, para atuar sem os limites da lei. No entanto, não é comum que o Parlamento dos países queiram agir dessa forma. No caso em pauta, os políticos querem limitar o poder dos juízes e limitar a atuação do STF para poderem utilizar, sem transparência ou controle, aquilo que ficou conhecido como orçamento secreto. A prática, limitada pelo judiciário, deveria ser banida da vida pública. O orçamento é uma peça pública a ser executada nos limites da lei e não há justificativa para ter parte secreta.
Nossa sociedade que tanto lutou pela democracia e que vê superar problemas contínuos na sua concretização, espera que mais essa dificuldade seja deixada para traz. A democracia tem por base a tripartição dos poderes e a vida republicana pede a publicidade dos atos dos governantes. Exceto para alguns pouquíssimos relativos à segurança do Estado, entre os quais não está o orçamento secreto.