Aproxima-se o Natal e com ele as confrontações entre o
Natal originário e o atual. Uns lembram que está esquecendo-se do
aniversariante cujo nascimento foi marcado pela extrema pobreza. Outros se
preocupam para que tudo saia de acordo com o planejado com mensagens de Boas
Festas, ceias, jantares, presentes.
Realmente o Messias nasceu numa gruta que servia de estrebaria,
sem pompa e no anonimato. Certamente Deus poderia ter mudado a cabeça de
Augusto para não fazer o recenseamento justamente na data do nascimento de seu
Filho, poderia ter evitado que Herodes mandasse matar todas as crianças da Judeia,
que a Sagrada Família tivesse que fugir para o Egito e assim por diante. Por
que tudo isso aconteceu? Certamente não é fácil a resposta.
Embora pessoalmente partidário do Natal originário, quero
me fixar um pouco sobre as comemorações, festas e presentes que ocupam a maior
parte do Natal nos dias de hoje para tentar dar uma explicação sobre o
fenômeno.
A partir do advento do Salvador Jesus Cristo a história
da humanidade tomou outros rumos. Os primeiros momentos do cristianismo foram
estritamente religiosos. Os valores antigos foram pouco a pouco sendo
substituídos pelos novos, embora a carcaça pagã tenha permanecido. Foi
semelhante ao processo de transformação da madeira em pedra ou a substituição
da matéria orgânica em sílica. Num segundo momento os valores cristãos
assumiram um caráter político e passaram a ser referência de poder. Foi neste
momento que se disseminaram em escala universal. Passaram a fazer parte da
cultura de todos os povos. Os principais deles: a valorização do Homem (e da
mulher) na sua dignidade, liberdade, igualdade e fraternidade e a justiça
social com suas exigências. Em terceiro, no estágio que nos encontramos, os
valores cristãos estão tomando vida autônoma. Desprenderam-se do cristianismo
como religião e assumiram uma postura laica. Existe na atualidade uma cultura
de origem cristã, no entanto, não se auto-identifica com a religião. Ela
impregna toda nossa sociedade. É nisso que reside a tensão: é cristão, mas não
se identifica com a religião cristã. Por isso mesmo, há as comemorações com
festas, troca de presentes, sem nexo com a religião. Estas práticas não fazem
parte do religioso-cristão, mas de uma cultura cristã. Por causa disso ocorrem
dois natais: o religioso cristão e o cultural cristão. O primeiro é
identificado com a pobreza e o segundo como falsificado. No entanto, não
parece que haja contradição entre o Natal cristão e o Natal cultural.
O problema não está no que vai para a mesa, nos
presentes, nas festas de comemorações, mas no sentido daquilo que se faz.
Quando o sentido originário foi desviado, temos outra realidade. Isto não
significa que é ruim ou mau. Apenas um pluralismo cultural. O próprio Cristo incentivava
o pluralismo. Não condenou, mas aceitou que Madalena quebrasse um alabastro de
perfume caríssimo para ungir Seus cabelos. Ia cear com pessoas de posses e
mesmo pecadoras. Ele mesmo na última ceia comemorou a Páscoa numa sala
emprestada de uma arquitetura divinamente bela. Concordou que o rico José de
Arimateia lhe emprestasse um túmulo. Apreciava descansar na casa de Maria e
Lázaro que não eram pobres. Contudo, condenava: a ganância, o roubo, a riqueza conseguida
fraudulentamente. Por quê? Por que se desviaram do sentido que deveriam ter. Fica
claro, então, que o Natal cristão e o cultural não são contraditórios, mas
diferentes.
Paradoxalmente muitas vezes estas críticas ao Natal
cultural provêm até de falsos pobres. Condenam aquilo que coletivamente têm em
abundância: enormes prédios, propriedades, comida farta, segurança e total
despreocupação com o dia de amanhã. Embora individualmente possam ter pouco,
coletivamente têm muito, pois nada lhes falta. Pobreza é não ter nem individualmente
e nem em conjunto. E isto pode acontecer por renúncia voluntária (como
Francisco) ou por necessidade como os excluídos. Ambos podem comemorar o
sentido do Natal, mas para os segundos é infinitamente mais difícil, senão
impossível. Diz um ditado popular: quando a pobreza bate à porta, a alegria sai
pela janela.
Por isso, não é por comemorar com festas e presentes - ou
sem eles - que o Natal é bem ou mal comemorado, mas quando se desvirtua do
sentido, isto é, ser cristão, religioso ou cultural. A Encíclica de exortação de Francisco,
Evangelii Gaudium, vai nesse sentido. Os bens são maus quando eles submetem o
homem, exigindo adoração como Bezerro de Ouro da Bíblia. Os bens devem estar a
serviço do homem e não vice-versa, diz Francisco.