sexta-feira, 16 de maio de 2025

Leão XIV e o legado de Agostinho. José Mauricio de Carvalho

 



A eleição do cardeal Robert Prevost, Leão XIV, realçou a herança espiritual de Agostinho de Hipona, inspirador da Ordem Religiosa a que ele pertence. Isso porque, em suas primeiras comunicações, o Pontífice revelou elementos da espiritualidade agostiniana. Apresentou-nos, evidentemente, aspectos dessa herança atualizada, porque a problemática do Bispo de Hipona, que viveu entre o quarto e o quinto século, como de todos os pensadores, é sempre datada e responde aos questionamentos de um dado tempo, ainda que contemple elementos universais.

Agostinho de Hipona, foi um pensador que impactou de forma profunda a tradição filosófica. Pelo menos entorno a dois temas importantes que são: a História e o Espírito (intimidade ou subjetividade que no seu tempo não se separava da alma como passaram a fazer os fenomenólogos atualmente). Para ambos os temas deixou contribuições notáveis que enriqueceram a tradição filosófica. O primeiro conteúdo abriu as portas para as filosofias da História de Bossuet, Hegel e dos idealistas em geral e o segundo ofereceu elementos de hidratação à mística cristã e aos estudos da subjetividade, como também fez Descartes. Claro que com a diferença de que a subjetividade agostiniana não se compreende sem Deus, ao contrário de Descartes onde Deus entra como arranjo.

O filósofo formou-se sob dupla influência. Um pai instruído, mas pagão e uma mãe cristã e santa, mas sem formação intelectual maior. Depois de uma juventude onde mergulhou nos prazeres mundanos iniciou um caminho de elevação espiritual que nunca mais parou e o conduziu a líder intelectual dos cristãos e bispo da Igreja. Nesse caminhar Cícero o colocou em contato com a tradição filosófica e, mais tarde, Ambrósio o apresentou a doutrina cristã dos primeiros padres.

Embora sua construção intelectual seja ampla queremos destacar três obras que nos legou: A Cidade de Deus (a mais importante da perspectiva filosófica), As Confissões (que abriu os estudos sobre o mundo interior) e o Tratado sobre a Trindade, onde proclamou a divindade de Jesus e caracterizou o mal como ausência de Deus.

Em Confissões realizou uma autoanálise, descrevendo sua jornada interior até alcançar Deus no fundo da alma, também tratando da morte, da finitude e das dificuldades e erros humanos. Como em Platão, o homem foi considerado simultaneamente anjo e fera. A alma possuía as seguintes faculdades: memória, inteligência e vontade (amor), nessa última ele enxergou a presença de Deus. No livro abordou a vida interior, o encontrar a si mesmo e ficar a sós com seu eu.

Para o filósofo, a alma faz uma jornada de fora para dentro, mas não se fecha em si, ao descobrir Deus ela descobriu o que é maior e que se reflete nela. Se a contemplação do mundo (teoria da iluminação platônica) nos apresenta seres temporais e contingentes, eles abrem o caminho para o Eterno, Imutável, Altíssimo e necessário que lhes serve de base. Como em Platão, as ideias estão na mente divina (Ser absoluto) e dão origem ao mundo (o mundo é reflexo dessas ideias ou modelos exemplares que Deus usou para criá-lo). Embora Deus seja descoberto na interioridade, ele, mesmo visitado, permanece inacessível a todo entendimento, apenas se deixando vislumbrar na alma. O mundo que habitamos foi criado por Ele e por sua vontade e bondade.

Enquanto Platão partia do mundo que chegar às Ideias eternas, Agostinho partiu dos movimentos da alma que alimentam a sensibilidade. É a alma que conhece o mundo, primeiro sensorialmente, depois quando se dobrou sobre si mesma e, finalmente, enquanto percorreu as vias íntimas descobrindo Deus. Com essa jornada, o filósofo não apenas defendeu a divindade de Jesus como superou o materialismo maniqueísta que lhe inspirara na juventude e ganhava força naqueles dias.

O filósofo criou um diálogo entre razão e fé que abriu a problemática medieval, embora nele a pesquisa e o estudo somente fossem bons quando incorporavam a sabedoria vinda de Deus. Porém, o estudo é fundamental porque não se pode amar o que se desconhece. A viabilidade desse mergulho em Deus decorre da marca deixada por Deus na alma de cada homem.  O conhecimento em si não conduz à felicidade ou a satisfação que só vem com a sabedoria. Essa surge no contato com as verdades eternas que ele encontrou nas cartas de Paulo. Sem sabedoria, o conhecimento é incompleto e impuro. O mal decorre da ausência de sabedoria. A origem das criaturas é o Eterno, base de sua cosmologia contra os Maniqueus. O mal em si não existe, ele é a ausência do bem ou da presença de Deus.

Na Cidade de Deus há uma reflexão análoga a cartesiana, que contempla a descoberta do eu, acima de todas as dúvidas. Não há engano na constatação de que sou. Se existo, não me engano a esse respeito, pois ainda que me enganasse sobre tudo continuaria a existir. Por seu próprio exercício, o espírito conhece as coisas, a si mesmo e indiretamente a Deus, presente na criação e sua causa fundamental. Todos os nossos conceitos são insuficientes para falar de Deus, mas nos dizem algo Dele. Na sua antropologia a alma, como o corpo vem dos pais, daí o pecado original ser deles herdado. Parte dessas ideias entra no protestantismo, Lutero era monge agostiniano.

Que lições deixou Agostinho para nossos dias? O propor que o movente maior da vida é amor (em suas várias formas). Quando alguém está em sintonia consigo move-se no amor. Sua luz elimina a sombra e atrai a verdade, como lembrou o Papa Leão XIV. Assim, não basta conhecer a lei (natural e divina) é preciso agir conforme ela, vive-la. É o amor que qualifica e move a alma. Esse é o núcleo do pensamento ético de Agostinho, daí o famoso imperativo ama e faz o quiseres (de acordo com esse movimento da alma para o amor). Agostinho identificou a necessidade da construção da Cidade de Deus, mostrando que o caminho da humanidade é um desafio moral de humanização, uma história com referência moral vivida no Reino de Deus. Por isso é, que o mal não prevalecerá, disse o Papa Leão XIV, porque o processo tem um fiador. Agostinho apontou os desafios maiores do cristianismo, uma história que vence e supera o mal e uma interioridade onde essa batalha também deve ser travada e vencida.

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