A eleição do cardeal Robert
Prevost, Leão XIV, realçou a herança espiritual de Agostinho de Hipona,
inspirador da Ordem Religiosa a que ele pertence. Isso porque, em suas
primeiras comunicações, o Pontífice revelou elementos da espiritualidade
agostiniana. Apresentou-nos, evidentemente, aspectos dessa herança atualizada,
porque a problemática do Bispo de Hipona, que viveu entre o quarto e o quinto
século, como de todos os pensadores, é sempre datada e responde aos
questionamentos de um dado tempo, ainda que contemple elementos universais.
Agostinho de Hipona, foi um
pensador que impactou de forma profunda a tradição filosófica. Pelo menos
entorno a dois temas importantes que são: a História e o Espírito (intimidade
ou subjetividade que no seu tempo não se separava da alma como passaram a fazer
os fenomenólogos atualmente). Para ambos os temas deixou contribuições notáveis
que enriqueceram a tradição filosófica. O primeiro conteúdo abriu as portas
para as filosofias da História de Bossuet, Hegel e dos idealistas em geral e o
segundo ofereceu elementos de hidratação à mística cristã e aos estudos da
subjetividade, como também fez Descartes. Claro que com a diferença de que a
subjetividade agostiniana não se compreende sem Deus, ao contrário de Descartes
onde Deus entra como arranjo.
O filósofo formou-se sob
dupla influência. Um pai instruído, mas pagão e uma mãe cristã e santa, mas sem
formação intelectual maior. Depois de uma juventude onde mergulhou nos prazeres
mundanos iniciou um caminho de elevação espiritual que nunca mais parou e o
conduziu a líder intelectual dos cristãos e bispo da Igreja. Nesse caminhar
Cícero o colocou em contato com a tradição filosófica e, mais tarde, Ambrósio o
apresentou a doutrina cristã dos primeiros padres.
Embora sua construção
intelectual seja ampla queremos destacar três obras que nos legou: A Cidade de
Deus (a mais importante da perspectiva filosófica), As Confissões (que abriu os
estudos sobre o mundo interior) e o Tratado sobre a Trindade, onde proclamou a
divindade de Jesus e caracterizou o mal como ausência de Deus.
Em Confissões realizou uma
autoanálise, descrevendo sua jornada interior até alcançar Deus no fundo da
alma, também tratando da morte, da finitude e das dificuldades e erros humanos.
Como em Platão, o homem foi considerado simultaneamente anjo e fera. A alma
possuía as seguintes faculdades: memória, inteligência e vontade (amor), nessa
última ele enxergou a presença de Deus. No livro abordou a vida interior, o
encontrar a si mesmo e ficar a sós com seu eu.
Para o filósofo, a alma faz
uma jornada de fora para dentro, mas não se fecha em si, ao descobrir Deus ela
descobriu o que é maior e que se reflete nela. Se a contemplação do mundo
(teoria da iluminação platônica) nos apresenta seres temporais e contingentes,
eles abrem o caminho para o Eterno, Imutável, Altíssimo e necessário que lhes
serve de base. Como em Platão, as ideias estão na mente divina (Ser absoluto) e
dão origem ao mundo (o mundo é reflexo dessas ideias ou modelos exemplares que
Deus usou para criá-lo). Embora Deus seja descoberto na interioridade, ele,
mesmo visitado, permanece inacessível a todo entendimento, apenas se deixando
vislumbrar na alma. O mundo que habitamos foi criado por Ele e por sua vontade
e bondade.
Enquanto Platão partia do
mundo que chegar às Ideias eternas, Agostinho partiu dos movimentos da alma que
alimentam a sensibilidade. É a alma que conhece o mundo, primeiro
sensorialmente, depois quando se dobrou sobre si mesma e, finalmente, enquanto
percorreu as vias íntimas descobrindo Deus. Com essa jornada, o filósofo não
apenas defendeu a divindade de Jesus como superou o materialismo maniqueísta
que lhe inspirara na juventude e ganhava força naqueles dias.
O filósofo criou um diálogo
entre razão e fé que abriu a problemática medieval, embora nele a pesquisa e o
estudo somente fossem bons quando incorporavam a sabedoria vinda de Deus.
Porém, o estudo é fundamental porque não se pode amar o que se desconhece. A
viabilidade desse mergulho em Deus decorre da marca deixada por Deus na alma de
cada homem. O conhecimento em si não
conduz à felicidade ou a satisfação que só vem com a sabedoria. Essa surge no
contato com as verdades eternas que ele encontrou nas cartas de Paulo. Sem
sabedoria, o conhecimento é incompleto e impuro. O mal decorre da ausência de
sabedoria. A origem das criaturas é o Eterno, base de sua cosmologia contra os
Maniqueus. O mal em si não existe, ele é a ausência do bem ou da presença de
Deus.
Na Cidade de Deus há uma
reflexão análoga a cartesiana, que contempla a descoberta do eu, acima de todas
as dúvidas. Não há engano na constatação de que sou. Se existo, não me engano a
esse respeito, pois ainda que me enganasse sobre tudo continuaria a existir.
Por seu próprio exercício, o espírito conhece as coisas, a si mesmo e
indiretamente a Deus, presente na criação e sua causa fundamental. Todos os
nossos conceitos são insuficientes para falar de Deus, mas nos dizem algo Dele.
Na sua antropologia a alma, como o corpo vem dos pais, daí o pecado original
ser deles herdado. Parte dessas ideias entra no protestantismo, Lutero era
monge agostiniano.
Que lições deixou Agostinho
para nossos dias? O propor que o movente maior da vida é amor (em suas várias
formas). Quando alguém está em sintonia consigo move-se no amor. Sua luz elimina
a sombra e atrai a verdade, como lembrou o Papa Leão XIV. Assim, não basta
conhecer a lei (natural e divina) é preciso agir conforme ela, vive-la. É o
amor que qualifica e move a alma. Esse é o núcleo do pensamento ético de
Agostinho, daí o famoso imperativo ama e faz o quiseres (de acordo com esse
movimento da alma para o amor). Agostinho identificou a necessidade da
construção da Cidade de Deus, mostrando que o caminho da humanidade é um
desafio moral de humanização, uma história com referência moral vivida no Reino
de Deus. Por isso é, que o mal não prevalecerá, disse o Papa Leão XIV, porque o
processo tem um fiador. Agostinho apontou os desafios maiores do cristianismo,
uma história que vence e supera o mal e uma interioridade onde essa batalha também
deve ser travada e vencida.