sexta-feira, 25 de junho de 2021

A inconsciência, crença e irracionalidade. José Mauricio de Carvalho

 

 



Quando vivemos numa sociedade de massas como a nossa, cujo comportamento dos membros é frequentemente irracional, os estudos de Freud são de enorme significado, pois eles lançam luzes sobre o que acontece. Isso porque a conduta do homem-massa não se manifesta, ordinariamente, no espaço entre ter e dar razão e muitas coisas parecem não ter explicação. A psicanálise ajudou a entender o motivo de o homem agir frequentemente de forma irracional e, outras tantas vezes, de modo não racional. Há uma diferença entre essas duas formas de ação, embora nenhuma das duas seja consciente. A primeira é conduzida por impulsos inconscientes e reprimidos, pertence ao sistema inconsciente, não chegam a consciência espontaneamente. A segunda inclui crenças ou propósitos internos, que estão na base da racionalidade e surgem como expressão de fé íntima. Esse último comportamento se baseia em ideias do sistema consciente/pré-consciente.

Essa é uma boa forma de entender as crenças, assumindo-as como aquelas ideias inconscientes que Freud entendera habitar o sistema consciente/pré-consciente. Assim parece entender Ortega y Gasset quando avaliou que crenças são guias existenciais comuns que nascem da fidelidade ao núcleo mais íntimo da pessoa. Para ele, as crenças guiam a vida, mas não se concretizam necessariamente em ações arbitrárias ou violentas. Crença é o que faz o homem, por exemplo, levantar todos os dias com esperança de que terá um bom dia e estar certo de que a vida caminhará para o melhor, quando sabemos que nenhuma das duas coisas tem garantias nem comprovação. Crença é também o que o faz subir para seu apartamento numa torre alta, sem se preocupar ou perguntar se a edificação é firme o bastante para não desabar. No entanto, as crenças podem ser questionadas em dada ocasião. Quando assim ocorre elas deixam de ser crenças para se tornarem ideias comuns. Ideias podem ser debatidas, aceitas ou recusadas, crenças não.

As crenças mostram a forma geral de atuação humana. Correspondem a um componente pré-racional, isto é, são um tipo específico de ideia. Ortega y Gasset mostrou que nossa vida nelas se sustenta, pois elas são um tipo de ideia que habitamos. Logo, não é a análise lógica que, ordinariamente, guia o homem, mas aquelas ideias às quais o homem adere completamente e sem questionamento. As crenças formam o alicerce de nossa presença no mundo. Elas “constituem a base de nossa vida, o terreno sobre o qual ela acontece. Porque elas nos põem diante do que para nós é a realidade mesma. Toda nossa conduta, inclusive intelectual, depende de qual seja o sistema de nossas crenças autênticas. Nelas vivemos, nos movemos e somos” [1].

Muito interessante é que Ortega y Gasset observou que as crenças marcam as gerações. Assim, algumas crenças são compartilhadas pelos homens de certo tempo, cada geração as recebe por herança e enquanto elas não se colocam contra os desafios que a vida apresenta, elas permanecem. Porém, quando a vida se modifica e a crença já não corresponde à vivência geral das pessoas ela é colocada em dúvida e isso é suficiente para ela deixar de ser crença.

A psicanálise representou uma significativa contribuição para compreensão da conduta humana, ao abrir os olhos de filósofos como Ortega y Gasset para essa realidade, somos movidos por forças inconscientes, algumas num sistema, outras noutro. Essa descoberta feita com observações cuidadas, cujas evidências foram aceitas pela ciência psicológica.  A ciência usa a evidência empírica para testar esquemas de situação e teorias. Porém, é preciso distinguir as observações que nascem no espaço da ciência, das derivações que ela permite no espaço filosófico. Isso é diferente da leitura distorcida e fantasiosa dos fatos observados. Esse falseamento da ciência é uma forma de mentira que destrói as construções racionais do homem. Elas formam crenças ruins.

Assim, do mesmo modo que houve, atualmente, da parte de governantes, descrédito da vacina e insistência em procedimentos médicos não reconhecidos, em meio a maior pandemia da história do Brasil; no século passado Hitler propôs, como científica, sem evidência controlada, a crença na teoria da superioridade ariana.

A ciência passa por percalços assim, a distorção das evidências para se chegar aos resultados que se deseja. Porém, a ciência é uma forma de racionalidade que não comporta tais desvios e os anos e a comunidade científica se encarregam de reformar as mentiras que nascem de crenças ruins. Porém fica-nos a lição de que as boas práticas da ciência, que pareciam uma crença unanimidade entre os líderes das nações não o é. O que se passou entre nós é prova disso. Precisamos defender a ciência tanto das simplificações errôneas, quanto das generalizações deformantes. Isso é parte da nossa racionalidade que é fundamental para corrigir crenças ruins e entender a irracionalidade.

 


[1] ORTEGA Y GASSET, 1994, v. V, p. 387.

 

Postagens mais vistas