sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Autodesenvolvimento e vida autêntica. José Mauricio de Carvalho

 


                                     Frankl


Ortega

Quando a filosofia existencial dirigiu o olhar dos filósofos para a vida concreta do homem, indicou não somente uma nova fase para o humanismo como olhou o homem, por inspiração fenomenológica, como objeto de estudo cuja existência faz com que o mundo apareça. Sim, os filósofos entenderam que cada homem é um mundo porque seu olhar para o que existe é único, mesmo que algumas coisas, que estão entorno ao sujeito, possam ser concebidas em comum e compartilhadas com os outros existentes. O olhar dos estudiosos se dirigiu para a experiência pessoal e única que torna singularíssima cada vida humana e a diferencia das demais. Cada homem seria ele mesmo, no tanto que fosse fiel a sua vocação, seu olhar ou ao seu núcleo íntimo.

A primeira consequência dessa forma de problematizar a existência humana é considerar que que o existente emerge do nada, busca o sentido de sua vida a partir de seu olhar para o mundo e, nessa busca, ele se sustenta em algo íntimo, segundo ensinou Martin Heidegger em Ser e Tempo. Seguir o caminho dessa singularidade pessoal é a maneira de ter uma existência autêntica, mas o homem não é obrigado a fazer isso e pode perder-se de si mesmo, comentou Ortega y Gasset no livro Entorno a Galileo. Essa constatação revela que o homem pode seguir ou não o caminho de seu verdadeiro ser. Caminho, observou Ortega y Gasset, influenciado pela sociedade e pelo tempo que se vive, mostrando que a fidelidade a si mesmo se exprime em ações e possibilidades numa sociedade concreta. No ensaio Ensimasmiento y alteración, Ortega detalhou como se desenvolve essa fidelidade em movimentos para dentro e para fora, processo em que cada um investiga o que crê de verdade e o que o faz ser fiel a suas verdades pessoais. Essas verdades íntimas e singulares são compartilhadas com as objetivas como as verdades da ciência, da filosofia e da religião.

Os filósofos da existência e raciovitalistas como Ortega y Gasset irão dizer que a vida autêntica vem do cumprimento de um projeto existencial, a realização de um sentido, ou mesmo de uma vocação, de uma missão que se singulariza na história de vida e no ambiente de cada homem. Algo maior e mais profundo que uma simples escolha intelectual, um ajuste interior esclarece em Meditación del Escorial. A psiquiatria existencial assumiu esse núcleo íntimo como orientador, não somente de uma vida autêntica, mas de uma vida saudável psicologicamente. Viktor Frankl foi o psiquiatra que melhor sistematizou essa tese em A questão do sentido em psicoterapia mostrando que o vazio existencial (viver sem sentido) estava na raiz de uma série de transtornos ou sintomas emocionais como depressão, violência e tentativas de suicídio. Isso porque o consultório de psiquiatras e psicólogos se encheu, no século passado, de pessoas que diziam que a vida não tinha razão de ser, que ela perdera a alegria de viver, que tinha tudo para ser feliz, mas não era, que andava triste sem motivo, dormia mal, mal comia, sentia-se triste, etc. Esse tipo de queixa, na grande maioria das vezes, indica o vazio existencial ou falta de uma razão para viver.

A experiência que viveu nos campos de concentração, que Frankl detalhou no livro Em busca de sentido, mostrou que o prisioneiro sem boa razão para viver, adoecia com maior facilidade e morria mais rapidamente. Esse fato, que pesquisas médicas recentes identificaram, foi o que Frankl registrou nos campos de concentração. Frankl verificou no que considerou o maior experimento que alguém podia fazer que, quando um prisioneiro se desconectava de um sentido, perdia o interesse de viver, adoecia e morria em seguida. Isso parece-lhe uma justificativa válida de sua constatação de que os mais aptos a sobreviver eram os que tinham uma razão para seguir vivendo, conforme reafirmou em O que não está escrito nos meus livros. (FRANKL, 2010, p. 115): “Esse foi o experimentum crucis. A capacidade primordial humana da autotranscendência e do autodistanciamento, como tanto enfatizo nos últimos anos, foi verificada e validada existencialmente no campo de concentração.”

Estudos de Ortega em La rebelión de las masas sobre o homem-massa, encontraram um homem sem compromisso com a excelência, infantil, acrítico, inculto e os trabalhos de Zygmund Bauman em Modernidade líquida tratou das características dessa sociedade de massas. Tratava-se de uma sociedade sem forma, onde não há firmeza. Essa sociedade é caracterizada, segundo o sociólogo, pela liquidez, volatilidade e fluidez de todas as suas relações. Ambos os autores mostraram o tamanho do desafio de descobrir um sentido ou missão existencial nesse espaço coletivo. Nesse tempo e espaço, com profunda crise de humanidade, é que temos o desafio de modificar o entorno para não submergir nele. Para Ortega y Gasset temos um movimento de dentro para fora, que se combina com a busca de um sentido, comparável a uma flecha em busca de um alvo. Vida autêntica não se alcança com um simples mergulho íntimo.

Frankl, por sua vez, ensinou a olhar esse movimento como a realização de um sentido presente no inconsciente, mas não num como foi descrito por Sigmund Freud, mas num inconsciente espiritual. Um inconsciente que não substitui a dimensão instintiva estudada pela psicanálise, mas que se forma pela repressão de valores espirituais e por reduzir a vida a pura relação com os fenômenos. Frankl ensinou a buscar o autoconhecimento que leva ao autodesenvolvimento. Isso somente virá com o respeito ao que nos entusiasma e desafia.


Postagens mais vistas