sexta-feira, 19 de outubro de 2018

O desafio de preservar o humanismo ocidental. José Mauricio de Carvalho - Membro do Instituto de Filosofia Luso-Brasileiro





Na medida em que se consolida a sociedade de massas e a generalização da tecnologia os estudos de humanidades que poderiam equilibrar o impacto da segunda e salvar a primeira da despersonalização são deixados de lado. Infelizmente poucos enxergam essa necessidade, embora tenham que se ver com consequências que não desejam. A despersonalização, própria dos tempos de massa, levam a uma vida inautêntica mostraram diferentes filósofos no último século (Jaspers, Heidegger, Ortega y Gasset, Delfim Santos, etc.) e também ao que o psiquiatra Viktor Frankl denominou neurose noogênica, e outros representantes da psiquiatria existencial chamaram de neurose social. Frankl resumia essa dificuldade na experiência do vazio existencial, do tédio e da percepção de falta de sentido na vida. Por sua vez, uma sociedade tecnológica mas que se despreocupa da tradição humanista perde as referências de moral social e de valores fundamentais de convivência que depois queixa de necessitar. Essa perda não é fruto de um governo, mas um movimento cultural amplo.
A tradição de reconhecer o valor da pessoa humana se consolidou durante a Idade Média com a revisão da herança do mundo clássico grego romano e a inserção nesse conteúdo da ciência moderna em formação naqueles dias. Essa tradição exigiu um aprofundamento da moral judaico-cristã meditada pela filosofia ocidental por séculos. Essas reflexões são a base da moral social e da vida cidadã.  
A ideia de pessoa humana penetra diversos campos de cultura ocidental. Miguel Reale, por exemplo, fez dessa ideia o núcleo de seus estudos jurídicos propondo o personalismo axiológico o eixo nuclear de seu tridimensionalismo jurídico. Essa filosofia do direito contempla a ideia de pessoa como o valor central e reconhece a importância da historicidade na construção dessa ideia. Afirma (Reale, Introdução à filosofia, Saraiva,1989, p. 160): “no centro de nossa concepção axiológica situa-se a ideia de pessoa como ente que é e deve ser, tendo consciência dessa dignidade”. Esse pensamento se completa com a aproximação entre valor e história, o que para Reale inviabiliza tanto um humanismo a-histórico, como um que se explique exclusivamente pela história. Foi essa observação que nos levou a sistematizar o desafio de tratar o sentido da vida associado à noção de valor estabelecido historicamente, questão posta como tema central do livro O homem e a filosofia, que teve recentemente uma terceira edição (Porto Alegre: MKS, 2018). Então, de posse dessas referências deixadas pela filosofia contemporânea, descrevemos a ideia de pessoa a partir de cinco aspectos: aprimoramento ético, propriedade, liberdade, responsabilidade e solidariedade, aspectos desenvolvidos ao longo da história. Esses valores foram trabalhados nessa tradição humanista: os dois primeiros no Decálogo de Moisés; a solidariedade é o assunto principal do lindo sermão da montanha de Jesus de Nazaré; a liberdade é um valor discutido pelos filósofos desde Agostinho e que encontra em Kant solução na síntese que ele elaborou com o nome de imperativo categórico. Kant ensinou, com esse imperativo, a respeitar a humanidade em si e no outro o que significa que a liberdade é a conquista de alguém que não se torna escravo de seus instintos. Outros valores foram aproximados recentemente da ideia de pessoa, o trabalho e o cuidado com a natureza.
O que foi dito acima mostra uma vida autêntica ou personalizada passa pela recuperação de valores que tecem nossa sociedade, nos colocam frente a necessidade de assumir, de forma profunda, o ensino das humanidades em nossas escolas e universidades, sem o qual todo o cabedal de valores, características da pessoa humana e da vida social como se desenvolveu no ocidente fica sem compreensão e força de sustentação. E, naturalmente, estabelece o desafio adicional de meditar filosoficamente e aprofundar essa herança humanista do ocidente.

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