sexta-feira, 1 de setembro de 2023

Falácias contemporâneas. José Mauricio de Carvalho

 



 

Vivemos uma crise de cultura examinada por diferentes intelectuais. De Berdiaeff a Gabriel Marcel, de Edmund Husserl a Martin Heidegger, de Martin Buber a Ortega y Gasset, de Karl Jaspers a Viktor Frankl, de Zygmunt Bauman a Vilém Flusser, todos tentaram explicar o que estamos enfrentando. Tantas explicações não nos livram de passar pelos dramas e confusões de nossos dias. Se tentamos compreender o que se passa nesse tempo de apuros mergulhamos em dúvidas.

A dificuldade para enfrentar a crise encheu as redes sociais de fake News. Nesse quadro nada confortável reapareceu a ultra direita com pautas contrárias ao que até pouco era considerado essencial à vida civilizada, a saber: a função social da propriedade, o estado de direito, os direitos humanos, a preservação ambiental, a democracia política, a racionalidade como importante exercício social de dar e ter razão, o reconhecimento do valor da ciência moderna como aquele conhecimento que legitimamente explica o funcionamento do mundo, ainda que insuficiente para dar conta da noção ampla da realidade e dos valores. Essa ultra direita posicionou-se contra o humanismo, atacou a imprensa livre, renegou os estudos das humanidades, combateu a independência do judiciário e fez uma interpretação torpe das ideias de Jesus de Nazaré. O cristianismo foi, nesse caso, afastado dos seus valores originários, associado a um moralismo inadequado por fanáticos ignorantes, a ponto de ser denominado de cristianismo do mal. Melhor seria dizer que estamos diante de um falso cristianismo, não de um mal. Todo esse clima cultural ajudou a ascender o racismo, a homofobia, a intolerância política, aumentou a violência social, a exploração humana e religiosa, o desrespeito àquelas pautas consideradas civilizadas e mais próprias dos seres humanos. Somos diferentes e únicos sim, genética e psicologicamente, mas isso não nos desobriga de construir uma sociedade fraterna e de irmãos, isto é, pautada por valores éticos. É uma falácia falar de um Deus de todos e propor a violência e a injustiça. Toda essa confusão e falácias que encontramos nas redes sociais se mistura a outros aspectos ruins da cultura de massa como: a transformação do homem em apêndice de uma máquina e a ampliação do desejo de gozar sem limites, de forma rápida e irresponsável. Uma análise dessas dificuldades de nosso tempo estão mais precisamente descritas no livro O enigma do inconsciente e a força da subjetividade (Porto Alegre: MKS, 2022). E os problemas ali mencionados são ainda mais graves e complexos que os acima mencionados (p. 8): “O desprestígio da razão é porta aberta ao totalitarismo. Todo esforço antifilosófico foi estímulo à barbárie. A antirrazão é o alimento dos governos antidemocráticos. E esses governos estimulam as massas. Não há melhor espaço vital para ideologias ruins que a ignorância, a negação da racionalidade, a descontinuidade da Filosofia e o desprestígio das Humanidades, o descrédito da Ciência e o radicalismo ideológico.”

A recuperação do humanismo e dos estudos de ética parece importante para enfrentar esses desvios de rota, alterações nos rumos da vida social que promovem, recusam ou diminuem a dignidade e o sagrado valor das pessoas. A essência do humanismo é que todos os homens possuem o mesmo valor e dignidade. E o reconhecimento da dignidade e de uma humanidade comum não elimina, como ensinam as falácias atuais, a singularidade de que somos feitos, mesmo quando entendemos pertencer à mesma humanidade. Isso é ainda mais importante se queremos construir uma sociedade de irmãos que reconhece em Deus o Pai criador de todos.

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