sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

Medos de nossos dias. José Mauricio de Carvalho

 



 

A consciência da finitude tornou-se tema privilegiado da filosofia existencialista. Essa passou a retratar a alma contemporânea. Nela a morte se tornou representativa das limitações humanas, exemplo do que é a vida. Filósofos como Karl Jaspers deram destaque a ela como representação de outras limitações da existência, base de nosso pensar sobre a existência.

O mundo moderno foi terra de estabilidade, nele o que tinha força era a participação pessoal nas instituições e se requeria uma personalidade estável e a participação em instituições igualmente seguras. Bauman entrou nessa discussão lembrando em Vida em fragmentos que (BAUMAN, 2011, p. 151): “nem o trabalho, nem o serviço militar são hoje muito demandados.” Isso porque o emprego industrial perdeu relevância e passou a ter um peso menor nas economias nacionais e as guerras tecnológicas não demandam numerosos combatentes nem um vasto número de reservistas. Por outro lado, a redução do peso do trabalho industrial e da vida militar retirou de governos e sociedade a responsabilidade maior com o cuidado com a saúde.

Com a transformação do cuidado com o corpo, o homem de hoje perdeu o controle rígido sobre as porções alimentares da modernidade quando (id., 157): “o alimento precisava ser ingerido nas quantidades medidas para manter o fornecimento de energia muscular nos padrões exigidos pelo trabalho civil e serviço militar.” Essa despreocupação com o planejamento alimentar levou ao sobrepeso e à doenças associadas ao consumo de alimentos calóricos. Manter o corpo em forma, atualmente, significa colocá-lo em condições de obter máxima estimulação.

A transformação no objetivo do cuidado corporal provocou outra alteração na vida social. Se já não são mais os médicos ou a exigência de saúde que controlam o que a pessoa deve ou não fazer e comer para ter boa saúde, o critério tornou-se obter prazer. O indivíduo é responsável pelas escolhas que faz (id., p. 160): “o corpo coletor de sensações é uma criação do tipo faça você mesmo, e seus defeitos são percalços auto infligidos.” Isso significa que eventuais falhas nesse processo estão na conta exclusiva do indivíduo. Os objetivos são o prazer alimentar, mas é preciso atenção com a estética corporal.

O homem de hoje ansioso por prazer não olha o outro com responsabilidade. Ele não tem nada a ganhar (id., p. 168/9): “com o ser-para o outro.” No caso do coletor de sensações em especial, manter a responsabilidade e independência do outro é estratégico. É necessário que o outro seja visto assim e essa alteridade dá a cada um a responsabilidade de sua vida, de modo que cada um cuide de obter o maior prazer, o outro que se lasque.

O medo da finitude, núcleo da filosofia da existência, foi correlacionado a outros receios hodiernos por Zygmunt Bauman no livro Vida Líquida. O primeiro medo examinado pelo sociólogo é o de tornar-se consumidor falho, medo de perder a atual condição de consumidor. Isso pode ser resumido assim (BAUMAN, 2009, p. 90): “em vez de grandes expectativas e doces sonhos, o progresso evoca uma insônia repleta de pesadelos de ser deixado para trás, perder o trem ou cair da janela do veículo em rápida aceleração.” Esse é o tormento da classe média que acha que apoiar a extrema direita o livrará dos riscos representados pelos consumidores falhos, embora os riscos que o ameaçam tenham outra origem, que eles desconhecem.

Um segundo receio de nossos dias que foi mencionado por Bauman foi tratado em Estranhos à nossa porta (2017). Ele representa a indisposição com o estrangeiro, o diferente, o pobre, enfim o marginal, as minorias, o consumidor falho. Para o cidadão de classe média (id., p. 92): “a segurança pessoal tornou-se um dos principais pontos de venda, talvez o principal, em toda espécie de estratégias de marketing.” O diferente é apresentado como criminoso, mesmo que de fato não o seja. O propósito desse cidadão é cercar o próprio espaço de modo a se sentir seguro, pois a globalização exige cada vez menos mão de obra para os trabalhos e há cada vez mais desocupados. Um bom exemplo é a produção agrícola, realizada com tecnologia crescente, produzindo grandes excedentes de mão de obra. O resultado é uma grande migração para as cidades, embora (id., p. 95): “o crescimento do capital em sua área urbana é muito pequeno para acomodá-los.”

Essa busca por segurança transformou casas em fortalezas, bem como bairros inteiros em ambientes fechados. E a classe média tenta se proteger do diferente. O medo também alcançou a construção do espaço público, cada vez menos valorizado e ocupado pelos consumidores. Assistimos uma transformação urbana (id., p. 99): “o espaço público foi a primeira baixa de uma cidade que está perdendo a árdua luta para deter ou pelo menos reduzir o avanço inexorável da força avassaladora da globalização.”

A deterioração do espaço público veio junto com o desprestígio da democracia e a emergência do neonazismo mundo afora, já que é em espaços públicos que a democracia se fortalece. Essa deterioração atinge principalmente aqueles espaços que pretendem superar as diferenças entre cidadãos. O desprestígio é parte da atual falta de compromisso com a democracia pelas grandes corporações e o capital financeiro e pelos medos que atingem a classe média.

 

Postagens mais vistas