sexta-feira, 27 de outubro de 2023

O Estado e sua alma, Israel

 

José Mauricio de Carvalho

Vivemos um tempo difícil com o renascimento do nacionalismo radical que reapareceu com o fim da Guerra Fria. O nacionalismo adoecido e os rancores que provocaram as duas grandes Guerras no século passado, surpreendentemente renasceram. Não é que o mundo que surgiu depois da Segunda Guerra fosse bom, estava longe disso. A divisão em dois grandes blocos e a permanente ameaça da bomba atômica produzia o medo real de uma guerra definitiva. No entanto, diante do risco do fim da humanidade, aquelas gerações tentaram reduzi-los. EUA e URSS, as potências líderes,procuravam controlar seus aliados e, por medo uma da outra, se mantinham distantes dassuas áreas de influência. As exceções confirmam a regra.Era um equilíbrio difícil, mas que persistiu algum tempo.

O fim da União Soviética mostrou as falhas de um sistema que tentou artificialmente criar uma sociedade menos desigual, mas tinha uma visão econômica que não acompanhou a evolução do capitalismo, era politicamente inspirada no despotismo oriental e tinha por referência um tipo de homem econômico que já não existia desde o século XIX. Por isso, o filósofo Martin Buber, muitos anos antes de 1988advertia que esse socialismo não subsistiria e a única sociedade solidária razoável precisaria ter a fraternidade universal pautada na sua alma. Um Estado cuja proposta social fosse essencialmente ética e não apenas política e econômica.

Quanto ao homemque somos, quando apenas seguimos nossos instintos, como observou Karl Jaspers (A bomba atômica e o futuro do homem, Rio de Janeiro: Agir, 1953, p. 32): “continua a ser o que sempre foi: com a mesma violência, falta de escrúpulos, coragem cega para luta e, paralelamente, o mesmo comodismo, indiferença, descaso e falta de preocupação previdente por parte dos proprietários, que nessa qualidade, sempre se deixaram dominar por aventureiros audaciosos.” No caso, a referência era a cooptação dos empresários por líderes de extrema direita como Mussolini e Hitler.

Voltando a Buber e a experiência de uma sociedade solidária, o que mais ele observou? Ele descreveu a fragilidade de qualquer projeto de fraternidade que não possuísse uma alma (Martin Buber, a filosofia e outros escritos sobre o diálogo e a intersubjetividade. São Paulo: Filoczar, p. 120): “O problema (do socialismo soviético) foi que com o passar do tempo foi-se perdendo o sentido comunitário e apesar de colônias mais ricas ajudarem as mais pobres, a solidariedade diminuiu. Mesmo com a redução da solidariedade, concluiu Buber, ao lado de Moscou, que é um dos polos do socialismo contemporâneo: atrevo-me a denominar o outro polo de Jerusalém.” O que Buber chamava atenção, muito antes da queda da União Soviética, é que o socialismo como o judaico somente era viável porque se pautava numa fé profunda no Altíssimo e essa se realizava no serviço aos irmãos. Por outro lado, ele acreditou que judeus e palestinos viveriam como irmãos nesse novo Estado.

Buber tratou dessas questões no livro Sobre Comunidadeque reúne sete ensaios dedicados à temas sociais, onde contrapôs o ideal de vida em comunidade ao modo de vida da sociedade de massas como estava se desenhando na Europa do último século. Os ensaios reunidos naquele livro foram elaborados entre 1905 e 1947, mesma época em que Ortega y Gasset elaborou o seu clássico La rebelión de las masas. No seu livro mais conhecido, Ortega resumiu como era o homem-massa que surgia:parecia-se a uma criança birrenta, senhorzinho satisfeito e um especialista tosco, ou seja, um verdadeiro novo bárbaro cujo reduzido conhecimento não estava à altura da cultura atual.

Os diversos textos que formam a obraSobre Comunidade tratam da formação de uma comunidade e refletem a adesão de Martin Buber à formação do Estado judeu na Palestina. Um Estado que não era apenas uma organização geopolítica, mas a tentativa de concretizar o ideal contemplado no livro de Isaías. De forma alegórica vemos numa magnífica ilustração de um mundo onde os diferentes conviverão em fraterna paz (11, 6-9): “O lobo viverá com o cordeiro, o leopardo se deitará com o bode, o bezerro, o leão e o novilho gordo pastarão juntos; e uma criança os guiará.A vaca se alimentará com o urso, seus filhotes se deitarão juntos, e o leão comerá palha como o boi. A criancinha brincará perto do esconderijo da cobra, a criança colocará a mão no ninho da víbora. Ninguém fará nenhum mal, nem destruirá coisa alguma em todo o meu santo monte, pois a terra se encherá do conhecimento do Senhor como as águas cobrem o mar.”Enfim, um Estado precisa ser mais que uma organização geopolítica e possuir uma alma que aproxime as pessoas, lhes confira identidade e solidariedade num destino comum.

A guerra entre Israel e o Hamas, além da outra Rússia e Ucrânia, mostra o quão longe os homens estão de viver de modo fraterno como propôs o profeta Isaias há 2700 anos e como o sonho de uma única nação reunindo diferentes descendentes de Abraão falhou.


Postagens mais vistas