sexta-feira, 26 de maio de 2023

A ética e a vida. José Mauricio de Carvalho

 




Quando o filósofo alemão Friedrich Wilhelm Nietzsche mencionava a aristocracia em seus textos sobre moral, tinha em vista antigas elites que não se preocupavam em justificar sua liderança. A moralidade enquanto costume, para ele, apenas afastava os grandes homens de seu destino. Se ele obedece leis externas não estará atento a suas exigências. Sendo assim, o espírito livre não é moral, porque nunca buscará fora um limite para seus impulsos. Zygmunt Bauman disse que Nietzsche afirmara isso considerando a moral cristã um projeto dos escravos de Roma, porém a liderança que o Nietzsche mirava era a medieval que vivia em castelos. Esse grupo de nobres constituía uma minoria distante da maioria (Vida em fragmentos, Zahar, 2011, p. 59): “nem construindo e nem precisando construir pontes por sobre o abismo que os mantinha separados, sem esperar por nenhuma comunicação dos comuns e dos de baixo, nem sentir a necessidade de comunicar qualquer coisa a eles.”

Em contrapartida, quanto a elite moderna, escreveu Bauman, quando pensou seu papel entendeu que necessitava justificar sua liderança perante as massas. Elas, então, precisaram de razões para liderar o que queria dizer que (id., p 60): “precisavam de uma ética – um código de regras para todos e para todas as ocasiões da vida, regras ubíquas, atingindo cada recanto e cada fenda do espaço dominado, direcionando ou detendo, conforme o caso exigisse, cada movimento para todos que habitassem aquele espaço.” Quanto à maioria moderna, em contrapartida, não necessitava de regras éticas uma vez que estavam numa situação que os obrigava por uma força brutal, as suas necessidades materiais. Essa maioria, que Bauman acolheu com a nomenclatura marxista de dominados, não necessitava, pois, de regras éticas. A ideia de que ela possuía algum modelo ético está distante da realidade e assim, segundo Bauman, não perderam o que não tinham. Para esses grupos não houve perda de padrões éticos, pois nunca acolheram as éticas dos filósofos como nunca entenderam a noção de mercado dos economistas. Para Bauman a maioria não é tocada por esses conceitos.

A interpretação de Bauman, em que pese acolha a ideia de crise de cultura que é fecunda, leva a conclusão de que (id., p. 64): “a crise da ética não necessariamente augura uma crise de moralidade. E ainda menos obviamente o fim da era da ética proclama o fim da moralidade.” Nesse sentido, as pessoas que vivem nesse novo tempo precisarão decidir o que fazer e se depararão com dilemas morais sem ter por referência uma regra moral. E nessa situação precisam se posicionar com a autonomia moral e também com sua responsabilidade. Essa conclusão de que a massa não necessita de um modelo ético como pano de fundo de suas escolhas morais parece injustificável, ainda que ela de fato não se detenha em construir e nem em fundamentar princípios. Reduzir as escolhas da maioria a responder a necessidades materiais tem o óbvio limite de acolher a visão materialista de um homem reduzido ao econômico, que foi próprio do marxismo do século XIX, visão superada nos séculos XX e XXI como disse Ortega há quase um século. O reconhecimento de que essa maioria, mesmo sem ter o controle da vida econômica, acabou assumindo o protagonismo da vida social, como mostrou Ortega y Gasset em A rebelião das massas, está mais próximo do que vemos acontecer. E há mais, a adesão das massas a uma interpretação rasa do evangelho cristão em nossos dias mostra o quanto o homem necessita de referências transcendentes para guiar-se no dia a dia. Isso considerando que essa interpretação, que lhe é ofertada em muitas religiões, está longe de uma leitura hermenêutica dos evangelhos. De todo modo, à parte dessas diferenças, podemos destacar uma confluência entre os dois filósofos, tanto Bauman quanto Ortega entenderam que as massas que assumem o protagonismo social no mundo pós-moderno não possuem um modelo ético, nem buscam a excelência da ação em suas escolhas quotidianas.

 

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