sexta-feira, 22 de julho de 2022

Liberalismo e estado de direito. José Mauricio de Carvalho

 


Um dos desafios de nossos dias é conseguir dialogar com o mundo que emergiu no século XXI. De certa forma, esse mundo começou a se desenhar antes desse nosso século, com o fim do comunismo real e o término da guerra fria de um lado e com a emergência daquilo que o filósofo Vilém Flusser chamou de sociedade telemática. Hoje escuto falar em comunismo, mas estou certo de que literalmente essa gente não sabe do que fala. Atualmente temos poucos estados comunistas no mundo e o comunismo não é uma ameaça. Coisa diferente é a social democracia europeia que embora tivesse uma inspiração socialista se ajustou ao estado de direito e a liberdade de mercado. Nesse sentido os sociais democratas estão próximos dos liberais moderados.

 Falemos então dessa sociedade de massas e da informática? Flusser explicou que ela possui uma estrutura social nova que ordena as pessoas em torno de imagens. Nessa sociedade todos ficam conectados pelas imagens técnicas, isto é, imagens produzidas por aparelhos. Todos se conectam em imagens, numa rede de aparelhos, mas vivendo em inegável solidão porque o aparelho se interpõe entre o indivíduo e a sociedade e impede relações laterais e o exercício do pensamento crítico. Flusser disse essas coisas há mais de quarenta anos e elaborou uma boa imagem do mundo da internet de hoje, especialmente se entendemos que a rede mundial de computadores deu um novo perfil à sociedade de massas de que falava Ortega y Gasset no século passado. Uma sociedade de massas, isso é comum, é um agrupamento de pessoas imaturas (Ortega chamava o homem-massa de criança mimada), com conhecimento de um campo, geralmente limitado a alguma profissão técnica (mas sem um conhecimento geral e humanista à altura de seu tempo). Tratava-se de pessoas que não se esforçavam e desejavam o prazer, eram contrárias ao esforço e excelência moral (Ortega os denominava senhorzinho satisfeito).

O homem-massa não aprecia o esforço moral e nem cuida de sua preparação intelectual, assim prefere um governo forte, onde não há dúvida e questionamentos, mas uma versão criada e difundida como verdade. Um protótipo perfeito dessa sociedade foi a experiência nazifascista que, por ironia do destino se originaram na pátria do humanismo (a Itália) e na maior cultivadora da filosofia desde a antiga Grécia (a Alemanha). Justo a Alemanha da venerável universidade de pesquisa, a instituição máxima da busca honesta pela verdade e pela sinceridade. Não foi à toa que os nazistas hostilizaram os professores que não se curvaram as suas mentiras. Eles passaram a controlar as universidades com mão de ferro impondo a mentira, a mais famosa a de uma raça ariana superior que acabou no extermínio de milhões de pessoas inimigas do regime e de judeus. O nazismo produziu uma sociedade vazia de humanismo, de racionalidade e liberdade. Uma sociedade que agia como um criminoso que quer apagar o mal feito de suas culpas de cujo exemplo mais terrível foi o campo de Auschwitz. O campo de concentração é produto de uma sociedade que perdeu o compromisso com a verdade, que eliminou a justiça independente, que perseguiu juízes independentes, destruiu a democracia e o estado de direito.  Hoje essa extrema direita destrói o meio ambiente, desprestigia a ciência, difunde o uso de armas e a novidade foi que inventaram um cristianismo que está longe dos ensinamentos do jovem carpinteiro de Nazaré.

Embora inicialmente os liberais não fossem democratas, pois defendiam uma representação política apenas dos grandes proprietários, aos poucos entenderam que a democracia com liberdade de associação, imprensa livre e de poderes independentes era a melhor forma de enfrentar os tiranos, especialmente aqueles que dissimulavam um propósito autoritário. E não se pode esquecer que liberais de raiz como John Locke e Charles-Louis de Esconda, barão de La Brède e de Montesquieu desenvolveram a ideia de poderes independentes e harmônicos como forma de o cidadão se defender do Estado. Em outras palavras, um judiciário forte, independente e que julga a partir de leis votadas pelos representantes do povo livremente escolhidos é a base das democracia ocidental e a melhor forma de defesa do homem comum contra o poder despótico (o poder absoluto concentrado nas mãos de um tirano).

Estamos diante desse desafio, defender, nesse novo mundo telemático e que revive as teses da extrema direita, as boas causas da humanidade que são: o humanismo (o entendimento de que o homem concreto é o maior valor), a liberdade responsável, o estado de direito, o meio ambiente, a imprensa livre, a ciência, a racionalidade contra o antirracionalismo. E para os que creem, recuperar a imagem do Cristo dos evangelhos: o pregador simples e humilde, o carpinteiro trabalhador, pacífico, fraterno, caridoso, próximo e amigo dos que sofrem todas as formas de miséria humana. O jovem profeta da casa de David prometido pelos outros profetas, o Messias que foi hostilizado e morto pelas autoridades políticas que obedeceram, por comodismo, aos fanáticos religiosos. Foi a esses últimos que Jesus se dirigiu em Mt. 21,31: “Em verdade vos digo, que os publicanos e as prostitutas vos precedem no Reino de Deus.”


 

 

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