sábado, 4 de dezembro de 2021

Quando a inteligência se torna adversária dos governos. José Mauricio de Carvalho

 



Muitas vezes na antiguidade os relatos dos fatos históricos acompanharam o interesse das dinastias que dirigiam as grandes civilizações. Os relatos daquele tempo enalteciam os feitos do rei e contavam os fatos de forma tendenciosa. A construção do que se chamou ciência histórica, na antiga Grécia, iniciou um esforço de objetivação no tratamento dos fatos. A interpretação deles é inevitável, mas não pode mudá-los apenas ajudar a melhor compreendê-los.

Ao longo dos tempos a interpretação e compreensão dos acontecimentos mudaram, mas a ciência histórica se consolidou reconstruindo o discurso e compreensão dos fatos passados à medida que obteve melhor informação sobre eles. Mesmo quando novos informes e dados sobre os acontecimentos foram identificados, a ciência histórica não prescinde das fontes primárias e das evidências que consegue reunir, por exemplo, da arqueologia, arquivística, química e de outras ciências que auxiliam na ampliação e melhoria da compreensão dos fatos e objetos históricos. Por isso, o cuidado e a preservação dos documentos e objetos são fundamentais para que a compreensão dos fatos possa ser desenvolvida e ampliada no futuro. Dessa forma, o passado pode ser continuamente revisado e melhor entendido, oferecendo novas lições às sucessivas gerações de homens.

Se a preocupação com a objetividade não foi marca na antiguidade, poucas vezes no mundo moderno o desprezo à inteligência, aos documentos e fontes históricas ocorreu, somente sendo observado em governos totalitários. Não é desconhecido que no início do governo nazista, durante o ano de 1933, simpatizantes e forças paramilitares daquele governo destruíram documentos e livros (Bücherverbrennung) sob os olhares complacentes das autoridades do Estado, sem que nada fosse feito para impedir essa ação contrária à inteligência. Naquele momento muitas obras fundamentais da cultura foram queimadas, como os trabalhos de Freud, somente salvos porque haviam deles cópias em outros países. Também não é desconhecida a perseguição religiosa e a mesma atitude ideológica contra a ciência e o livre pensamento na antiga União Soviética. Hoje, porém, o comunismo é coisa passada, não é ameaça real, o que não se pode dizer da extrema direita.

O pano de fundo da ação nazista foi a mentalidade autoritária do partido que, contra qualquer crítica, impunha violenta repressão e condenava todo discurso que se desviasse dos seus padrões e orientações. A justificativa para essa destruição da cultura e para a suspensão do debate foi elaborada por adeptos do regime como o poeta Hanns Johst. Os ideólogos nazistas diziam que era necessário preservar a pureza da cultura germânica de tudo que a pudesse transfigurar. Os ideólogos do novo governo também se especializaram em espalhar notícias falsas (hoje denominadas fake news) para fortalecer e justificar a ideologia imposta pelo governo. Dessa forma, instituições como as chamadas fraternidades, o Destacamento Tempestade (SA) e a Tropa de Proteção (SS) do governo participaram da barbárie disputando entre si quem queimava mais livros.

Dessa forma, a história ensinou que, no mundo contemporâneo, as experiências não democráticas vêm acompanhadas da destruição da inteligência, da verdade, das artes, da filosofia, pervertem e desmontam a ciência, enfim destroem muito ou de quase tudo que torna a vida bela, plural, interessante e humana. Governos autoritários e de massa desprezam a inteligência e a perseguem, adoram os relatos rasos, a vida medíocre, a mentira e uma religiosidade tosca. Não se pode desconhecer também que embora a igreja católica ficasse oficialmente fora da perseguição nazista, milhares de religiosos e sacerdotes que contestaram a brutalidade e ignorância dos nazistas em nome dos autênticos princípios cristãos foram silenciados ou mortos.


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