sexta-feira, 8 de setembro de 2017

Consequências da Revolução Gnosiológica de Kant. Selvino Antonio Malfatti




O pensamento ocidental seguia sem significativas rupturas até o século XVIII, uma trajetória que, iniciada com Aristóteles na antiguidade e seguida por Santo Tomás na Idade Média. Quando se ingressa no período moderno-contemporâneo começam as turbulências com Descartes e culmina com Kant cujas raízes podem ser encontradas em Platão. O pomo da discórdia foi a concepção gnosiológica, mais precisamente a questão da metafísica. O que conhecemos e como conhecemos o mundo externo, inclusive nós, pois podemos ser objeto de conhecimento de nós mesmos.
Certa vez um biólogo me disse: eu jamais quereria estudar ciências humanas. Por quê? - perguntei. Por que nunca há nada definitivo. Qualquer conteúdo sempre deve ser retomado desde o início. Os problemas sempre voltam à tona. Nas ciências, há marcos de não retorno. É definitivo. Não há necessidade de se estudar a história da física, da biologia e mesmo da matemática. Na filosofia, porém, não há momentos de antes e depois. Sempre é agora, sempre a questão é retomada embora tenha sido estudada anteriormente. Claro que o conhecimento filosófico tem marcos também, mormente os valores, mas diferentemente da ciência, são sempre questionáveis.
Vejamos o caso da dignidade da pessoa humana, valor este surgido no período medieval. Este valor, no período, se restringia à concepção de supremacia absoluta da pessoa. Era um valor sem permutas. Atualmente este valor pessoa humana se estendeu ao direito – como proteção - na economia – atribuindo um valor mínimo digno pelo trabalho – na administração – não invadindo a esfera individual ou privada. O contínuo questionamento possibilita o avanço e o resultado é seu aperfeiçoamento global. O conhecimento filosófico é circular, pois todas  as dimensões progridem.
Já na ciência o avanço é linear. A ciência possui uma trajetória traçada por uma linha reta que inicia num determinado ponto e dirige-se ao ponto seguinte e este ao próximo.
Retomando, em filosofia uma das questões mais debatidas é a relação sujeito-objeto. Foi o que precisamente fez Kant: contudo,invertendo a postura gnosiológica.. Até então o objeto imperava soberano sobre o sujeito. Este estava subordinado ao objeto. O princípio: nihil est intellecto quod prius non fuerit in sensu, de Aristóteles (Nada há no intelecto que antes não tenha passado pelos sentidos). Kant realizou a revolução copernicana. Em vez de os objetos penetrarem na mente, são regulados pela mente. A mente lhes dá forma e matéria. Por isso, se quisermos conhecer os objetos devemos primeiramente conhecer a mente. É o que estabelece na Crítica da Razão Pura que estuda as categorias, ou as propriedades de nosso conhecimento que reflete a realidade. Daí que o princípio se inverte: nihil este in sensu quod prius non fuerit in intelellecto (nada há no mundo real que antes não tenha passado pelo intelecto).
As consequências de tais posturas são revolucionárias. Tomemos, por exemplo, a questão do conhecimento de Deus, liberdade, imortalidade. Pela metafísica anterior a Kant havia possibilidade de provar a existência de Deus. Vejam as Cinco Vias de Santo Tomás. Com Kant, para chegar a tais realidades, a mente deveria ter as categorias plantadas nela, tais como infinito, eterno, todo-poderoso, imortal. Como a mente é destituída de tais categorias não pode ter acesso a estes conhecimentos. Nossa mente está aparelhada somente para conhecer o mundo sensível.
O pensamento de Kant é retomado em Hegel e este é pensado por Marx. Até aqui o conhecimento da realidade provinha da observação da experiência. Mas desde que se conhece a realidade pelo que está na mente então podermos conhecer a realidade social e política nas categorias mentais. Basta estudar o pensamento que se conhece o mundo social e político. A consequência é a inversão, O conhecimento ao se deparar com a experiência constata que é imperfeita, multifacetada, tem avanços e recuos.Ao se dispensar a experiência, tem-se tão somente o que se crê que sejam categorias mentais. Estas apresentam uma visão de mundo perfeito, uno, que conhece somente o rumo da perfeição. Tudo se encaixa, flui perfeitamente.O conhecimento é um mundo igualitário no qual as diferenças são abolidas na aplicação prática. Uma organização política do topo para as bases na qual são excluídas as divergências. O direito oriundo do pensamento estatal através de seu representante. Partido único.  Imprensa unívoca.  A educação coordenada pelos ditames de ordens de dirigentes. Enfim, um projeto emanado do que se acredita que sejam as categorias da mente e, como resultado, uma visão que abrange a totalidade.
Felizmente o próprio Kant se deu conta e escreve outro livro dando a dica: Crítica da razão PRÁTICA. Aí tudo se recupera novamente: Deus, imortalidade da alma, ética e moral, liberdade, enfim o que vinha sendo praticado até seu aparecimento. No entanto, seu pensamento criou vida própria e as consequências todos conhecemos.

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