sábado, 18 de abril de 2015

Vencer o tempo do desconhecimento e dos preconceitos. José Mauricio de Carvalho - UFSJ




No final do século XIX alcançava o auge o preconceito e desconhecimento mútuo entre brasileiros e portugueses. No livro O Brasil Mental (1898) de autoria de José Pereira de Sampaio (Sampaio Bruno) tem-se uma ideia do desconhecimento mútuo reinante naqueles dias.  
Aquele foi um tempo impactado pelo positivismo, que não separava o desenvolvimento espiritual dos povos e da humanidade do estado social das sociedades. Assim, O Brasil Mental apresentará não somente o que se passa na inteligência brasileira, mas revelará O Brasil Social, ou melhor, tentará chegar ao primeiro pelo segundo. O pano de fundo das preocupações de Bruno é a França e seus filósofos para quem se voltam os olhares da população culta de Portugal.
O ponto de partida de semelhante empreendimento é o desconhecimento da vida espiritual brasileira pelo português culto que do Brasil somente conhece os  fatos econômicos, especialmente a exportação do café e a vitória militar sobre Solano Lopes, governante do Paraguai. Esse desconhecimento era mútuo, pois os intelectuais brasileiros também estavam pouco interessados no que se passava em Portugal. E Sampaio Bruno exemplifica o desconhecimento lusitano reproduzindo o assombro com que foi recebido em Portugal o livro de Silvio Romero denominado Filosofia no Brasil. Comentava-se entre gargalhadas nos bares e círculos sociais: "Com que então: a Filosofia no Brasil? Hein? Esta nem o diabo lembra! Se fosse a carne seca do Brasil, ou a feijoada do Brasil ... Mas, agora Filosofia no Brasil. Valha-nos Deus" E riam-se jubilosos da sua suficiência" (p. 44).
A ignorância acrescenta Bruno era alimentada pelo estereótipo do brasileiro tratado como comerciante grosseirão, identificado com o português repatriado e pouco culto. A culpa é nossa, diz o autor da obra, "pois que o tipo brasileiro, se não criamos, o deformamos nós" (p. 48).
E a leitura interpretativa de Bruno, apesar do louvável esforço para superar o preconceito reinante, está limitada pela redução do universo mental brasileiro ao positivismo, que ele também avaliou mal por conhecer pouco.
As considerações de Bruno sobre o positivismo transitam entre os limites da doutrina e sua presença na mentalidade brasileira, que ele atribuiu ao magistério de Benjamin Constant Botelho de Magalhães, militar que "vulgarizou o positivismo entre os moços estudantes" (p. 95).
A influência de Benjamin Constant, que se aliara à escola francesa de Emile Littré no repúdio à religião da humanidade, tinha como centro irradiador a Escola Militar, embora seu magistério tenha ganhado projeção com a proclamação da República. No entanto, nem entre os positivistas Botelho de Magalhães tinha reconhecimento incontestável, havendo os que como Miguel de Lemos e Teixeira Mendes o criticaram, mantendo-se fieis à síntese subjetiva de Augusto Comte. Esses homens criticavam a República de Benjamin Constant e da elite militar por considerarem-na democrática e metafísica. Por sua vez, as posições de Benjamin Constant reservavam ao exército o papel constitucional de vanguarda do positivismo, o que não tem correspondência na história do movimento e desses fatos Bruno nada diz. Por outro lado, muitas das críticas que Bruno fazia ao positivismo, entre as quais a inadequação da lei dos três estados, já fora feita, muito antes por Luis Pereira Barreto.
Outro problema do livro de Bruno é que além de não diferenciar as vertentes do positivismo brasileiro, não enxergou as outras filosofias que inspiravam a renovação cultural do país iniciada na década de setenta, vinte anos antes da publicação de seu livro. Nos anos oitenta, nas escolas de direito, por exemplo, parcela substancial da intelectualidade se alinhava ao culturalismo que teve notável impacto na vida do país e cuja novidade Bruno não percebeu, embora tivesse conhecimento do movimento e dos textos produzidos. E esse culturalismo de inspiração kantiana rejeitava o monismo, reconstruía a Filosofia e antecipava várias teses que somente foram discutidas pelos neokantianos alemães vinte anos depois de Tobias Barreto ter divulgado suas teses. Tobias deu-se conta de o que havia de essencialmente humano não podia ser reduzido à coisa natural e nem podia objeto da ciência, diferenciando o homem enquanto objeto da ciência e enquanto possuidor de liberdade e de inspiração moral.

Se o livro de Sampaio Bruno aponta a ignorância mútua de brasileiros e portugueses sobre a vida mental dos seus países, ele próprio não escapa deste desconhecimento, suas preocupações abrem o caminho para a redescoberta mútua que ainda está longe de ser completada mais de um século depois. Esse é um desafio apenas iniciado com os esforços do Instituto de Filosofia Luso-Brasileiro nos últimos trinta anos. É neste esforço que se organiza o XI Colóquio Antero de Quental dedicado ao estudo da filosofia jurídica luso-brasileira.

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