sexta-feira, 12 de julho de 2024

Por que ler Bauman. José Maurício de Carvalho.

 


                                                 Friedrich Wilhelm Nietzsche

Uma questão que se nos apresenta desde que temos contato com um autor é: o que ele traz? O que ele comenta e como o faz? Nós falamos de um dos clássicos da Sociologia contemporânea, mas as repostas de Bauman para a crise de cultura ou as dificuldades de nosso tempo vão para muito além da Sociologia. Há dois campos em que suas questões logo dialogam, com a Filosofia e com a Economia. Talvez ainda haja um terceiro campo por onde passam seus estudos, a Psicologia.

Entendemos que os grandes intelectuais têm com seu tempo um compromisso vital, entendê-lo, decodifica-lo e apresenta-lo aos contemporâneos. O que o tornará um clássico é a qualidade do conteúdo que oferecerá na compreensão dos seus dias, dos seus problemas e de como eles dialogam com as grandes questões humanas. E não há como começar a entender Bauman se o percebemos acompanhar a enorme quantidade de intelectuais que se debruçaram com o tema da crise de cultura. Vivemos um tempo de crise, dias diferentes de quando a humanidade caminha serena em suas rotinas.

Desse entendimento partilham intelectuais de várias áreas como filósofos, historiadores, sociólogos, antropólogos e de tantas outras. E se são unânimes na identificação da crise, divergem, contudo, na sua leitura e explicações dela. Alguns dos mais conhecidos são Ortega y Gasset e seu estudo das massas, Vilém Flusser e seus estudos sobre os campos de concentração, Max Scheler e suas considerações sobre valores, Karl Jaspers e Viktor Frankl sua avaliação sobre a falta de sentido da vida; ou talvez de uma autenticidade, diria metafisicamente Martin Heidegger; provavelmente também uma crise de como entender e viver a liberdade diria Jean Paul Sartre; do que fazer na história disse Kierkegaard; de um mundo sem valores absolutos, dissera Nietzsche; ou que deixou de considerar Deus, retificou Martin Buber.

Bauman enxergou na raiz da crise a existência de profundas alterações no mundo econômico e as próprias dificuldades do capitalismo globalizado. De um lado há problemas econômicos o que significa que o dinheiro virou variável independente, o trabalho foi reduzido a mercadoria deixando se ser elemento na relação intersubjetiva, a desterritorialização do capital, tornou frágil os governos nacionais reduzindo o estado de ação do Estado do bem estar social.  Por isso, a relação dos cidadãos com o Estado ficou fragilizada, porque esse não consegue lhe oferecer com qualidade aquele mínimo que ele se acostumou a ouvir ser obrigação do Estado. As guerras e disputas locais provocaram o deslocamento de milhões de pessoas pelo mundo, tornando gravíssimo o deslocamento migratório de grande quantidade de pessoas. E a presença do estrangeiro em grande quantidade passou a ameaçar a organização social e ser usado pelos políticos de direita como sendo a causa das grandes dificuldades da sociedade, mesmo quando claramente não o é.

E esse mundo em transformação acelerada afeta a vida das pessoas e torna a existência subjetiva um desafio de sentido, isso porque a sociedade de consumo estimulou tratar as dores e dúvidas da existência fora de um esforço pelo sentido. Sem qualificar a rotina a pessoa passa a nela viver apenas o gozo irresponsável apontado pela sociedade na distração e do consumo. Em certo sentido esse é um quadro que veio se desenhando há mais de um século e que se acelerou desde o final do último século. Porém já encontramos notícias desses assuntos na conhecida obra de Friedrich Nietzsche, Assim falou Zaratustra onde o filósofo antecipou a antítese entre o homem que tomava a vida nas mãos e o contrário dele, o hedonista irresponsável ou o niilista arquetípico que nada faz de notável, não aceita correr riscos e busca apenas conforto na rotina, gozo consumista e segurança.

A sociedade de massa e de consumo de nossos dias ajuda a promover esse novo hedonismo. Ela orienta a forma de viver: sente a vida vazia? Consuma! O reflexo consumista é melancólico identifica o desafio existencial, os medos e a finitude e os reduz a sentir vazio, frio, deprimido e o combate com a necessidade de encher o íntimo de coisas quentes, ricas, prazeirosas. Claro que as indicações de consumo são amplas, não se limitam a alimento (pode ser roupa, passeio, distração em geral, sexo irresponsável, relações efêmeras, tudo o que apenas distrai e não tem razão maior). O resultado de tal vida é que estamos vendo crescer pelo mundo: a depressão, o medo, a insegurança, consumo de drogas, ou ainda um conservadorismo anacrônico que procura voltar a costumes e antigos padrões existenciais que não respondem mais aos novos desafios. A questão é que essa proposta redunda em amores líquidos, relações sem consistência, além da tristeza, infelicidade, nervosismo, insônia, como descreveu o psiquiatra Viktor Frankl. O simples atendimento do desejo não resolve a questão existencial, o desejo quer gozar. Assim cada desejo satisfeito acende outro numa aspiral crescente e acelerada, alimentando a ansiedade e, no fundo, a insatisfação com a vida se a tanto ela se limita.

E o que nos permite pensar as considerações de Bauman sobre a crise de cultura, as soluções propostas e os dilemas que elas abrem? Que o encontra-se como sempre esteve preso ao mundo material e dos prazeres que ele necessita para viver, mas não lhe oferece sentido. Esse mundo o domina e aniquila, deixando-o na solidão, na depressão, na insegurança, no tédio que se segue ao prazer e na ameaça de se perder nas coisas, de se tornar uma coisa entre tantas. Fica-nos o desafio do sentido, das buscas de um ente que se descobre em movimento, mas que é preciso se abrir a coisas maiores entre os desafios banais do que fazer no dia a dia.

Então vemos reaparecer os alertas que a filosofia fez nos últimos tempos. Não há como fugir do mundo e de seus desafios, mas a forma como se faz isso faz toda a diferença. Sem abertura a algo maior, a pessoa fica na sua limitação e infelicidade. E sem se questionar sobre o que há, sem encontrar um sentido para o ordinário, fica-se no muito limitado. Tenho que encontrar um sentido pessoal, mas há referências culturais que não se pode desconhecer, que não se pode perder. Elas ajudam na qualificação da vida. A cultura me oferece a Ciência, a Filosofia, a Religião, a Arte e preciso apanhar na cultura o que meu tempo tem a dizer de cada um desses elementos. Somente assim consigo me orientar e estar à altura do meu tempo. Desses aspectos culturais a Filosofia abrirá um diálogo com a transcendência no espaço da razão e nos ajudará a superar esses dilemas.  Caberá a cada um buscar apoio e conhecimento em cada uma das grandes construções culturais.

 

 

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