sexta-feira, 29 de novembro de 2013

VIDA ESPECIALMENTE HUMANA. José Mauricio de Carvalho.






Estes dias reencontrei antigos colegas de curso na comemoração de trinta e dois anos de conclusão da formação universitária. E ao revê-los todos e todas na incontida alegria do reencontro deparei-me com existências maravilhosas, vidas dedicadas ao que nunca pude imaginar quando convivia com aqueles moços e moças. Não se sai impune de um reencontro em que se escuta do colega, que tem nos olhos a ternura amadurecida no sofrimento, que viveu esses anos para estudar, amparar, acompanhar e aliviar as dores de pessoas diagnosticadas esquizofrênicas. Que vida é essa, é inevitável que se pergunte?
Desde que se consolidaram os primeiros núcleos de civilização os homens se perguntam sobre o que seria uma vida propriamente humana. A simples pergunta nos coloca diante da constatação: uma vida singularmente humana não se limita a responder aos desafios imediatos da sobrevivência. Se conseguir os meios de sobreviver é importante, viver por viver nunca pareceu valer a pena. Sem se encantar, apaixonar-se, entregar-se, a vida humana é uma pobre experiência de sentido.
Encantar-se tem algo irracional no sentido de que não dedica a cuidar dos que sofrem por decisão exclusivamente racional, não se decide escolher um companheiro ou companheira simplesmente fazendo um balanço intelectual, não se escolhe um amor como se busca um bom reprodutor ou reprodutora para gerar filhos bonitos e saudáveis. Uma vida sexual satisfatória só ganha charme e duração quando além do contato físico propicia momentos de partilha do mundo do outro. Ortega y Gasset falava de um descansar no outro que é para quem ama um lugar feliz de acolhimento. E o encantar-se é a possibilidade de olhar de perto a personalidade do outro, de encontrar as analgesias para a alma submetida à distância incômoda e inevitáveis ciúmes e experimentar a terna superação das mágoas involuntariamente causadas.
Encantar-se é levar o componente irracional da paixão, ou melhor, transferir o olhar maravilhado do amado para o cuidado com os que sofrem, para as amizades cultivadas, para o ato criador de beleza e bondade. Isto permitiu construir mais que um simples lugar para viver, mas criar um espaço cultural que é uma espécie de segunda pele. Uma pele em que nos sentimos verdadeiramente homens, mais do que quando estamos dentro de nossa pele corporal que nos mantém protegido das inadequadas condições para a vida biológica.
Encantar-se é também comprometer a inteligência com a verdade, mergulhar numa procura diuturna do que vale a pena conhecer, apreciar, avaliar e aprender. Encantar-se está na base da Filosofia. Ela é uma forma de admiração que Aristóteles observa no comportamento do antigo grego quando ele desejava entender os movimentos do universo e com tal preocupação chegou à Filosofia, o maior bem com que os deuses presentearam os homens. Encantar-se, portanto, tem algo irracional, mas não é irracionalismo ou misticismo que ordinariamente alimentam crenças ruins e nos colocam na mentira e na dúvida.
Uma vida especialmente humana é uma criação, é uma realização pessoal que ocorre para além das exigências biológicas, para além da rotina e das repetições sem sentido. E uma vida humana está, em nossos dias, cada vez mais comprometida com relações respeitosas com o ambiente, com o reconhecimento da dignidade dos outros que une todos numa humanidade comum, apesar das diferenças e singularidades. Uma vida dedicada à superação da violência. Enfim, uma vida que se realiza em direção ao futuro, no ir adiante dos limites atuais para encontrar no que transcende a experiência fenomênica os elementos de sentido que diferenciam a vida do homem de outras formas de existir. Uma vida onde o sentido suplanta as dores do momento e o gozo efêmero que ao acabar deixa o vazio da angustia
E só então, pelos imprescindíveis momentos em que vamos além das exigências diárias, é que a vida humana adquire o sentido singular que a diferencia de outras formas de existir. É nessas ocasiões que se fortalece o compromisso com a singularidade que nos faz tão diferentes sob a humanidade comum. É na construção de sentido único que vemos alguém fazer do cuidado com os que sofrem uma razão para a própria vida.


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