quinta-feira, 28 de maio de 2020

EXORTAÇÃO AOS MÉDICOS E ENFERMEIROS EM MEIO A PANDEMIA. Selvino Antonio Malfatti.





Está despertando interesse um texto, relativamente pequeno, de Albert Camus intitulado AOS MÉDICOS DA PESTE. É praticamente inédito para a maioria das línguas, inclusive para o português.
Camus foi filósofo. Jornalista, dramaturgo. É detentor do Prêmio Nobel da Literatura de 1957.
Originário de Mondovi, Argélia, durante a ocupação francesa de 1913. Filho de camponeses ficou órfão de pai na batalha de Marne na Primeira Guerra Mundial ainda criança. Logo no início as dificuldades financeiras bateram à porta da casa. Trabalhou em diversos setores como vendedor, meteorologista, escritório na marinha e na Prefeitura. Para sua formação em Argel teve a ventura de ter sido ajudado por dois professores.
 A PESTE é considerada sua obra prima. O pano de fundo da obra está envolta na filosofia existencialista professada pelo autor. Possui um forte conteúdo moral principalmente no que se refere à solidariedade entre os seres humanos. Ao tratar da questão da liberdade chama a atenção não só para o livre arbítrio como a responsabilidade pelos atos de cada um.
Quanto ao texto da EXORTAÇÃO AOS MÉDICOS DA PESTE, 1941, parece ser uma introdução à obra maior que viria posteriormente: a Peste, 1947.
O livro de Camus A Peste é altamente simbólico e alegórico. Simbólico por que por trás do texto desenvolve-se a Segunda Guerra Mundial e alegórico porque pelo conteúdo são analisadas as diversas reações da natureza humana diante do perigo comum.
Camus imagina ou inventa uma epidemia, em 1940, Oran, na Argélia. Três personagens são centrais na alegoria: há o médico,  Bernard Rieux,   humanista, incansável, dedicado, pronto para sacrificar-se, crendo na natural bondade humana;  seu vizinho, Jean Tarrou, que se dispões a organizar a resistência contra a epidemia; o oportunista, Joseph Cottard, que aproveita a crise para fazer negócios principalmente de contrabando.
Mas vamos ao texto da Exortação, válido ainda após 75 anos de sua publicação. O Covid-19 reacendeu o interesse de Camus, pois nele dá principalmente para médios e enfermeiros orientações, avaliações, exortações para enfrentar o inimigo invisível que pode estar no chão, no ar, nos objetos, onde menos se espera, como no fôlego do amigo, na sua mão, no seu abraço e mesmo no beijo.
Diz ele que não sabemos se é contagiosa, mas entendemos que sim. Por isso, uma das precauções é deixar as janelas bem abertas. Além disso, munir-se de máscaras e óculos apropriados para evitar o contágio. Munir-se de tudo o que pode evitar o contato. Cada um tenha cuidado de si não só para não ser contaminado como para não contaminar.
Deve-se evitar olhar de frente para o contaminado. Não visitar pacientes em jejum ou depois de alimentar-se demasiadamente. O contato físico, nem pensar. Descartado “ in limine”. Isto vale, sobretudo para médicos e enfermeiros.
Se for profissional como médico ou enfermeiro o ponto de partida é nunca ter medo. O medo infeta o sangue e esquenta os ânimos. Além disso, numa guerra os projéteis matam tanto os corajosos como os medrosos. Para que o corpo possa vencer o foco infeccioso a alma deve estar forte. Camus fala:
“Portanto, vocês, médicos da peste, devem enfrentar a ideia da morte e se reconciliar com ela, antes de entrar no reino em que a praga o prepara. Se você for vitorioso nisso, será vitorioso em todas as coisas e os verá sorrir em meio ao terror. Em conclusão, eles precisarão de uma filosofia.”

Cultivar a alegria razoável de modo que a dor não altere o fluxo do sangue. Nada em contrário em consumir um vinho em pequena quantidade. Ajudará a manter o ânimo. Zelar para que as regras adotadas sejam respeitadas tais como os bloqueios e as quarentenas. A população pede para que esquecer um pouco quem si mesmo, sem esquecer o que deve a si mesmo.
Armados da firmeza da virtude deve enfrentar o cansaço e manter a imaginação acesa. Jamais habituar-se a ver os homens morrerem como moscas, como acontece hoje nas estradas. Não deixar de comover-se diante das gargantas enegrecidas, das quais emana um suor fétido e sanguinolento.
E arremata Camus:
A primeira coisa é que você nunca deve ter medo. Homens foram vistos fazendo seu trabalho como soldados muito bem, apesar de terem medo do canhão. Mas isso ocorre porque a bala de canhão mata indiscriminadamente os corajosos e medrosos. Na guerra, muito se deve ao acaso, mas não à peste. O medo corrompe o sangue e aquece o humor, todos os livros dizem [...] Para que vocês, médicos da peste, se fortaleçam contra a ideia da morte e se reconciliem com ela, antes de entrar no reino preparado pela peste. Se você triunfar aqui, triunfará em todos os lugares e todos verão você sorrir em meio ao terror. A conclusão é que você precisa de uma filosofia”. (Albert Camus, 1947-  Exortação aos médicos da Peste)
Se quiséssemos fazer uma comparação poderíamos dizer que o texto se assemelha à Ética a Nicômaco de Aristóteles no trato do profissional com os pacientes.

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