sexta-feira, 19 de março de 2021

Os inimigos da liberdade. José Mauricio de Carvalho

 



A liberdade é uma preciosidade humana, pois ainda que comporte muitas definições e tenha limites práticos, a vida livre combina a trama do que se busca na vida com o que ela fez de nós. Assim, entre o que resulta do que escolhemos e do que nos acontece seguimos nossa história pessoal, trazendo na memória os marcos desse percurso singularíssimo que amarra nossa consciência única com uma circunstância igualmente única.

A tradição ocidental consolidou, deste a antiga Grécia, os germes de uma liberdade que ia da vida singular à participação política. Ela se dava no debate dos problemas da cidade nas praças por uma parte da sociedade. E assim, passando pelo cristianismo que focou a liberdade humana na sua dimensão moral, na capacidade de escolher entre o bem e o mal, até a modernidade quando René Descartes costurou a ideia de uma subjetividade livre, o mundo ocidental acostumou-se ao tema. Tornou-o um valor importante, desde que parece ao homem ocidental odiável ter a sua vida privada tutelada por outrem ou pelo Estado.

Os debates entorno à primeira questão levaram ao desaparecimento da escravidão e da segunda orientou a experiência política liberal. Na pátria de origem do liberalismo, a Inglaterra, a liberdade política foi, inicialmente, uma exigência da classe proprietária, que obrigou a oligarquia monárquica a aceitar a sua participação na gerência do Estado. Isso ocorreu com a participação dos proprietários na Assembleia Nacional. O principal teórico desse momento inicial do liberalismo, John Locke, não apenas formulou a ideia de representação pelos interesses, como amarrou bem o exercício da liberdade pessoal à representação política. Dessa forma, outras pessoas e classes conseguiram, mais tarde, se fazer representar no parlamento com as reformas eleitorais inglesas dos séculos XIX e XX. Foi então, quando todos os cidadãos podiam votar e serem votados, que o liberalismo se aliou definitivamente à democracia.

O liberalismo democrático consolidou-se no Reino Unido e nos Estados Unidos e, depois, foi-se firmando em outros países ocidentais. E as teses liberais se consolidaram em todos os campos da vida social, como na relação entre a democracia e a educação nos livros de John Dewey. Nas últimas décadas o liberalismo viu crescer uma corrente conservadora que proclamou uma menor intervenção do Estado na economia, movimento que ganhou força no governo de Ronald Reagan nos Estados Unidos, com Thatcher na Inglaterra e Jacques Chirac na França. Esse liberalismo conservador era pragmático, antirromântico e cuidadoso na defesa da liberdade pessoal e do indivíduo contra o Estado. Assim, embora proclamassem uma menor intervenção do Estado na vida do indivíduo, valorizavam o estado de direito, a representação política e a justiça independente, garantias do cidadão contra as arbitrariedades do governo.

Quando se vê, em nosso país, pessoas defendendo soluções antidemocráticas e contrárias ao estado de direito, à organização constitucional e contra os poderes Judiciário e Legislativo, julgando defender a liberdade e a propriedade estão justamente fazendo o inverso e revelando desconhecimento político. O verdadeiro amigo da liberdade e defensor da livre iniciativa trabalha com as instituições, a divergência entre os liberais está no quanto deve o Estado atuar na construção de políticas sociais, uns acreditando que deve ser mais, outros menos.  Essa é a discussão entre os democratas e republicanos nos Estados Unidos, considerando-se intolerável qualquer tentativa de desorganizar os outros poderes, como ocorreu na confusão feita por Donald Trump no final do seu governo. Naquele dia, como disseram os norte-americanos, eles pareceram ser uma república das bananas. Venceram afinal as instituições e Trump saiu pela porta dos fundos.

É o judiciário livre e independente que assegura a defesa do cidadão, da propriedade e é um legislativo livre e atuante que assegura a procura do consenso em meio ao dissenso próprio da democracia. A ditadura do executivo é um nazifascismo, a intervenção de força nos outros poderes também foi observada na experiência comunista. Nazistas, fascistas e comunistas são totalitários e, nesse aspecto, farinha do mesmo saco.

A experiência histórica do ocidente mostrou a não confiar em soluções fora do Estado de direito quando o que se pretende é defender a liberdade pessoal, o direito de propriedade e a autonomia do cidadão frente ao Estado.


 

 

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