sexta-feira, 15 de setembro de 2017

AS SEPARAÇÕES DO DIVÓRCIO. SelvinoAntonio Malfatti



Quando se perde um ente querido da família costuma-se preservar o que deixou. Seu guarda-roupa, objetos pessoais, local de trabalho. Foi o que aconteceu com a filha Serena de Giulio Andreotti, falecido em 2013. Passados quatro anos animou-se a examinar o acervo de cartas enviadas e recebidas. Qual seu espanto quando descobriu entre as cartas um romance inédito do pai. Imediatamente, ao saberem, as editoras se interessaram e o romance será publicado em dezembro deste ano pela Nave de Teseo. 

A importância do romance, intitulado, “Il Buono Cattivo” (O Bom Mau), reside na peculiaridade de ser ambientado no fragor da batalha do referendum sobre o divórcio na Itália, em 1974. De um lado o Vaticano contra e de outro um Parlamento e sociedade divididos a favor ou contra.  Este fato histórico significava para a Itália ou continuar um estado quase confessional, e intimamente ligado aos desejos do Vaticano e de outro tornar-se um estado totalmente laico.
O romance assume importância, pois foi escrito, na época, por alguém que foi um dos maiores líderes do partido da Democracia Cristã, exerceu por sete vezes o cargo de Presidente do Conselho (primeiro ministro), senador vitalício. Não escapou as acusações de Mani Pulite por associação com a máfia, no entanto, a justiça não conseguiu condená-lo.

Na época, Andreotti, em que pese ser do partido majoritário, o da Democracia Cristã e recém deixado o governo, não se envolveu “cum ira et studio” na batalha do referendum sobre o divórcio que dividiu a Itália pelo SIM ou pelo NÃO. Preferiu uma atitude sutil, moderada. Provavelmente, como político astuto, já sabia o desfecho, ou previa. Farejava os sinais dos tempos, em que pese fosse católico devoto e frequentador do Vaticano, via que a sociedade não pensava assim. Já não era mais nos tempos de Alcide di Gasperi, o líder político-católico, fundador da Democracia Cristã, perípdo no qual se dizia: Di Gasperi, na Missa, fala com Deus e Deus fala com o padre. Por isso retirou-se estrategicamente e participou a seu modo do confronto. Sem o fervor do líder do partido do Escudo Cruzado, Gabrio Lombardi ,e muito menos deu ouvidos às profecias milenaristas de Amintore Fanfani e outros líderes semelhantes da Democracia Cristã de braços dados com o com alguns outros partidos. Encarou o pleito com frieza, ou por desencanto ou por prever o resultado. Podia-se dizer que estava com os pés no chão, sem ilusões.

No entanto, em que pese sua suposta indiferença e e passividade, o fracasso não estava nos seus planos. A prova está no texto encontrado, escrito no galope do desenrolar do processo eleitoral, abordando questões ético-políticas, nas quais a Itália se engalfinhou ferozmente.

O enredo envolve uma pensãozinha no lago Como. Os personagens: a patroa, a senhora Falconi e os hóspedes. O mais importante, o advogado Pedro Paulo Santulo e o próprio narrador. Além de temas de tribunais eclesiásticos aqui entram outros temas, tornando a narrativa cativante. A filha de Andreotti, ao ler o romance testemunha que se pode “escutar” o pai, claro nas idéias, ora benevolente, ora irônico, consigo mesmo e com os demais.
Na verdade Andreotti não estava de acordo com a consulta popular. Achava que o assunto era ainda prematuro e que melhor seria procrastiná-lo para melhor amadurecê-lo.

A Itália caminhava a passos rápidos rumo à laicização. Um dos parâmetros que podia medir externamente a religiosidade era a participação à missa dominical. Já se podia perceber o rápido declínio neste culto religioso. Quanto ao uso de contraceptivos, o clero posicionou-se contrário. No entanto, a taxa de natalidade diminuía a olhos vistos. Não menos dogmática era a postura em relação ao aborto. Entretanto, os abortos clandestinos aumentavam dia à dia, igualando-se aos nati-vivos. Mas a de maior repercussão, mormente para a Democracia Cristã,  foi a questão do divórcio. 

Em dezembro de 1970, num debate que durou aproximadamente cem horas, foi aprovada a lei da instituição do divórcio. Isso aconteceu graças à união dos deputados  católicos aos deputados dos partidos laicos, desafiando, inclusive, a orientação do Vaticano. Amintore Fanfani, acreditando numa maioria do eleitorado católico, e, que fosse fiel às orientações do partido e da Igreja, propõe a abrogação da lei através de uma consulta popular. A Igreja, porém, parece que percebia melhor a tendência da sociedade despercebida pelo próprio líder Fanfani da Democracia Cristã. Até mesmo no interior do partido havia oposição ao referendum como foi o caso de Flaminio Piccoli. Diante da insistência da Fanfani pelo referendum, a direção do partido, em reunião de 9 de fevereiro de 1974 estabeleceu a posição do partido perante o referendum. Deveria votar pela abrogação da lei embora optasse por manter os temas religiosos fora da campanha eleitoral. Os argumentos contra o divórcio não deveriam ser de caráter religiosos mas de ordem social e civil. Além disso, se deveria manter a porta aberta ao diálogo com os católicos contrários à abrogação, ou os católicos do não. Decidiu-se, também, manter o atual governo bem como a aliança que o sustentava fora da contraposição. Para obter os votos necessários ao SI o governo e seus aliados, fizeram de tudo. O líder do do Partido Socialista italiano, Bettino Graxi, ao ser entrevistado em quem deveria votar dizia laconicamente: vão à praia. A abstenção favoreceria o Si. Mas nada adiantou.
O resultado não podia ter sido mais desastroso para a Democracia Cristã e seus aliados.. Os divorcistas, isto é, os partidários do “No”, pois não queriam a abrogação da lei do divórcio, conseguiram 59,1%, sobre uma população de 88% que compareceu à votação.
As conseqüências se fizeram sentir de imediato:

1.  Divórcio entre a Democracia Cristã e Vaticano. Na prática, romperam relações.
2.  O partido da Democracia cristã fracionou-se internamente.
3.  A Democracia Cristã perde a maioria.
4.  Vários filiados e políticos a abandonaram.. 
5. Perdeu-se a credibilidade nos valores do partido Democracia Cristã.
     6. Os políticos começaram a envolver-se em corrupção.

A partir de então, inicia-se o processo de diáspora dos simpatizantes, uma longa agonia, dissolução e morte da Democracia Cristã.

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