sexta-feira, 7 de agosto de 2020

O humanismo renascentista de Mirandola. José Mauricio de Carvalho – Pós-doutorando do NUPES/UFJF


Ao olharmos para a tradição filosófica acabamos envolvidos com o problema de encontrar nesse passado da Filosofia algo que ajude a entender o nosso tempo e seus problemas. Isso parece mais ou menos evidente, mas merece atenção. Só se as filosofias de outros tempos puderem inspirar nossas questões atuais isso dá sentido a esse olhar para o retrovisor da História. Muitos filósofos já disseram que a Filosofia não é uma coleção de pensamentos mortos, mas uma especulação que embora tenha proximidade com os problemas e a visão de certo tempo, possui um elemento original e imprescindível que reaparece a cada tempo e inspira as gerações. Cada filosofia realiza esse encontro com a originalidade da verdade que se encontra subjacente a cada tentativa dos filósofos. E é isso que temos que ir buscar em cada uma delas.

 

 Quando olhamos o final da Idade Média e início da modernidade, encontramos uma visão de síntese com elementos da ciência moderna emergente, do pensamento filosófico de então e da fé religiosa. O humanismo renascentista que nasceu do diálogo com os clássicos (Antiga Grécia e Roma) permitiu uma síntese entre esses vários elementos culturais. Isso significa que, na perspectiva daquela geração dos séculos XIV e XV, a ciência não nasceu e não precisava ser feita contra a racionalidade filosófica e nem contra a fé religiosa. Ali encontramos um humanismo que conseguiu agregar essas várias dimensões do espírito: razão experimental, especulativa e fé. O que foi mesmo aquele humanismo? Há nele lições importantes para o homem contemporâneo? Vamos responder a essas perguntas recordando as reflexões do filósofo neoplatônico Giovanni Pico della Mirandola (1463-1494).

 

Entre os diversos humanistas do período como Francesco Petrarca (1304-1374), Leonardo Bruni (1374-1444), Mario Nizolio (1498-1576), Miguel de Montaigne (1533-1592), queremos destacar a contribuição de Pico della Mirandola porque ele combinou a reflexão filosófica com as conclusões da teologia da época. Em seu texto mais conhecido o Discurso sobre a dignidade do Homem (1486) ele procurou resumir o que era essencialmente o homem. Mirandola escreveu qual era o destino do homem enquanto construtor da história como se segue (MIRANDOLA, São Paulo: GDR, 1988, p. 6): “tu, porém, não estás coartado por amarra nenhuma. Antes, pela decisão do arbítrio, em cujas mãos te depositei, hás de determinar a tua complexão pessoal.”

 

Nessa citação, o filósofo tratava da liberdade humana de uma forma que fora inicialmente pensada como atributo de Deus. Mirandola ajustou a ideia de liberdade para se ajustar a forma como o homem pode usá-la. A vida do homem encontra-se em suas mãos, dizia. A liberdade por ele apregoada realçava a possibilidade de escolher um caminho existencial, consistindo nisso a singularidade e dignidade humanas. O que diferenciava o homem dos outros entes não era a pura racionalidade, como preconizara Aristóteles, pois isso deixaria os seres espirituais em melhor condição, mas a liberdade para criar uma vida singularíssima e dar-lhe a direção desejada rumo ao futuro ao futuro.

 

No livro O Homem e a Filosofia há um comentário dessa obra e da contribuição de Mirandola que passo a citar (Porto Alegre: MKS, 2018, p. 168/9): “O homem era, nesta interpretação daquele humanista renascentista, aquele ser que usa a razão para criar a si mesmo e melhorar sua natureza animal. A ideia de liberdade forjada pelo filósofo italiano deixou essa lição instigante, o homem pode construir sua existência. E, nesse sentido, ele é criador como Deus ou co-criador junto com Deus, pois é o responsável pelo seu destino. Ele divide com Deus esse importante atributo: a liberdade. Naquele momento da história dizer isto significou que ele podia mudar para melhor a natureza de que fora criado. É verdade que o pensador ainda tinha Deus como referência, mas já fazia a dignidade da criatura depender mais do que ela fizesse. Não fechava os olhos para o fato de que os homens podem dominar, matar, escravizar, mas acenava para uma possibilidade de autocontrole dessa sua natureza violenta. Ele indicava, ainda, a possibilidade de cada homem poder se valer de uma interdição de natureza moral e se guiar por valores que a razão e a cultura lhe apontavam. O pensador tanto se refere ao sujeito singular como ao homem, em geral, membro de uma sociedade. Como membro da espécie cada sujeito é igual a todos os outros, mas como indivíduo é único, e pode construir seu futuro. Neste sentido, a espécie é portadora de esperança, seus membros podem fazer boas escolhas. Quando, diversamente, escolhe mal a humanidade se torna indigna do seu Criador.

 

A obra de Mirandola mostrou que o homem é aquele ente que constrói o seu mundo. Ao pensar o homem como senhor de seu destino, Mirandola reconhece-lhe uma dignidade que não está em outros entes. Retirada as referências metafísicas da época e afastada das crenças renascentistas, as análises de Mirandola emergem plenas de significado e atualidade em nossos dias.”

 

E onde foi resgatada as lições desse humanismo? Ela reaparece na tese existencialista de que o homem é quem faz seu destino e é fruto de suas escolhas. A existência humana única e singular, realiza um projeto ou sentido, foi o tema de Ortega y Gasset e Viktor Frankl. Em outras palavras, não importa de onde esteja partindo, não importa o quanto se desviou do mapa interior que tem inconsciente, cabe ao homem viver por um sentido único. O esforço para construir a singularidade acaba fazendo efeito. A singularidade existencial, reconhecida como jornada única e responsável e que aparece nessa meditação de Mirandola como um valor é um legado importante do filósofo italiano.


 


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