sexta-feira, 4 de setembro de 2020

David Hume e as bases do materialismo moderno. José Mauricio de Carvalho – pós doutorando do PPG Psicologia/ NUPES/UFJF.

 


David Hume (1711-1776) foi filósofohistoriador britânico, nascido na Escócia. Ele ficou conhecido na tradição filosófica pela proposta de um empirismo radical e por defender um ceticismo filosófico. Hume foi um dos maiores nomes da filosofia na modernidade.

Como compreender esse seu papel na tradição filosófica? Há quatro nomes essenciais à sua volta que ajudam a entender suas ideias: ele é herdeiro do subjetivismo moderno de René Descartes, mas crítico de seu racionalismo subjetivista; é o ponto de chegada do empirismo e do iluminismo britânicos por continuar a reflexão de John Locke e George Berkeley e ainda o inspirador do filósofo alemão Emmanuel Kant. Não é pouco o que deixou na história do pensamento. Esse último filósofo lhe atribuiu o papel de despertá-lo do sono dogmático por melhor formular o problema da metafísica (Crítica da razão pura, Nova Cultural, 1987 – os pensadores - p. 32) além de ser o responsável pela crítica devastadora da noção de causalidade (p. 26) que exigiu de Kant o desenvolvimento das chamadas formas puras da intuição.

Como o filósofo se relaciona com seus antecessores? Berkeley dera sustentação ao empirismo, mas deixara um resto de pensamento metafísico com o acolhimento das ideias cartesianas de substância pensante ou espírito. Berkeley porém atacara a noção de substância material do cartesianismo, que ficara preservado no empirismo de Locke. Ao radicalizar o psicologismo de Berkeley, Hume destruiu a noção de substância material deixada por Locke e a de substância espiritual, ainda presente nas teses de Berkeley. Em resumo: Descartes dizia existir as duas substâncias (pensante e extensa) mais Deus, Locke concordava com Descartes, Berkeley dizia existir eu e Deus, mas não a substância material. Hume concluiu simplesmente que não há eu, nem mundo, nem Deus.

Como ele propôs e defendeu essas ideias? Empregando um novo método de investigação que associou os dados da sensibilidade às ideias que temos. Assim se experimentamos uma impressão (ou dado sensorial) pelo contato com o pôr do sol, por exemplo, mais tarde poderemos lembrar desse astro e formar dele uma ideia. Temos aí uma ideia simples que nasce do contato direto com a coisa. E como concebemos as outras ideias não associadas às impressões sensíveis? Como formamos a ideia de substância, acima mencionada, seja ela material ou espiritual, como ela surge? Hume avaliou que ela não veio de nenhuma impressão que recebi, nem a reunião delas. Ele concluiu que ela é fruto da imaginação, o que equivale a dizer que é uma ideia fictícia, uma criação do homem. Se não acho no mundo uma impressão para a substância material, ele disse, também não encontro nenhuma impressão para associar ao eu. O que se denomina assim é um conjunto de vivências interiores, mas não há propriamente um eu observado nelas. Assim chegamos às ideias complexas.

Essas ideias complexas, por exemplo: substâncias, eu, causa, realidade não são, entretanto, uma criação a esmo da imaginação. Em sua vida prática, o homem observa uma certa regularidade no mundo e se vale dela em sua vida. Logo que acende o fogo, observa a claridade e sente o calor, então, por conta da associação psicológica desses estímulos, afirma que luz e calor foram causados pelo fogo. O que permite associar essas coisas é, contudo, apenas o hábito. Em outras palavras temos uma certeza psicológica. Não há propriamente um vínculo metafísico entre elas, ou eu não posso concluir isso pelo que é possível experimentar no mundo.

O que nos ficou das meditações desse filósofo? Há quem destaque o seu ceticismo destruidor da metafísica, das ideias sobre espiritualidade e todas as ideias complexas. Porém não se pode considerar nesse ceticismo apenas seu caráter demolidor, ele possui também uma dimensão crítica, pois aprofunda os mecanismos de operação do intelecto.

Hume é o ponto de chegada do empirismo inglês e defensor de um psicologismo que estabeleceu no costume e no hábito a base do pensamento científico. Ele fez isso considerando verdade as regularidades obtidas com a observação. E justamente por defender esse psicologismo radical, consideramos o filósofo como o ponto de partida do positivismo e do materialismo modernos, não porque Hume acreditasse na possibilidade de uma resposta metafísica para o problema da realidade, mas por que disse que realidade é o que se obtém com a associação dos dados da sensibilidade. E isso foi decisivo para que parte dos cientistas deixasse de lado qualquer questão metafísica ou espiritual, parecendo-nos a raiz do movimento moderno que Martin Buber denominou de eclipse de Deus no mundo ocidental. Esse movimento suprimiu adicionalmente a linguagem metafísica e da psicologia espiritualista do pensamento ocidental. O movimento identificado por Buber mostra como o pensar, conforme categorias materialistas, suprimiu (O eclipse de Deus, Verus, 2007, p. 19): “a ideia de Deus e, dessa forma, também a realidade de nossa relação com Deus.” Além disso, antecipou o simplificador discurso da inutilidade da filosofia, discurso ingênuo que não se dá conta de que é ele próprio metafísico, mas bem ao gosto do anti intelectualismo das massas de nosso tempo.

Esse movimento começou com a valorização dos sentimentos e instintos que, conforme Hume, está na base da vida prática, do utilitarismo inglês e da moral da simpatia. Essa moral foi a forma pela qual o empirismo de Hume chegou ao mundo do trabalho e do mercado. Simpatia, resumiu Adam Smith é o sentimento que me permite olhar para mim mesmo com os olhares dos outros e me julgar segundo a expectativa que eles têm de mim. Ortega y Gasset fez uma crítica demolidora a essa forma de comportamento que me leva a querer ser como todo mundo e a agir como todo mundo, mas isso é tema para outro dia.


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