sábado, 15 de fevereiro de 2020

Antonio Paim, a pessoa e o mestre. Selvino Antonio Malfatti - Professor titular aposentado UFSM





















I - O Encontro

Conheci pessoalmente Antonio Paim em 1981. Foi num Colóquio sobre Max Weber (1864-1920) realizado na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Viamão, no Rio Grande do Sul. Ele era um dos palestrantes.
            Estavam presentes também, como palestrantes, o professor Ricardo Vélez Rodríguez e o finado embaixador José Guilherme Merquior (1941-1991) e o padre jesuíta português Francisco Videira Pires (†2002), entre outros. Esse Colóquio foi promovido pelo então Instituto Lindolfo Collor, sob os cuidados de Cezar Saldanha, professor de Direito Constitucional da Universidade de São Paulo (USP). Eu então era professor da Universidade Federal de Santa Maria e participava como co-coordenador do referido Colóquio que era dirigido a jovens militantes de partidos políticos do Rio Grande do Sul.
            Eu já conhecia Paim pelos seus escritos, mormente através do livro História das Ideias Filosóficas no Brasil, de sua autoria. A imagem que fazia de Paim era de uma inteligência brilhante e esperava ouvir uma personalidade firme, desenvolta, com raciocínio rápido e conclusivo. Quando Paim começou a falar, quase tive uma decepção. Era alguém que sugeria, levantava dúvidas, raciocinava sempre sobre hipóteses. Ele abordou a questão das formas de dominação de Max Weber. No entanto, não pude deixar de me sentir instigado pelo seu discurso. A impressão que tive foi de que, num turbilhão de ideias, Paim conseguia agarrar alguma e a jogava para nós.
            Merquior abordou a questão dos valores em Weber, Ricardo Vélez falou sobre o positivismo no Rio Grande do Sul e Videira Pires sobre a política e a religião. Os melhores momentos eram os debates, pois se estabelecia uma interação entre os palestrantes e a plateia. Era nesses momentos que Paim crescia. Ele se tornava então outra pessoa: contava anedotas, ironizava, sorria complacente. Os participantes aprovavam e ele se entusiasmava. Paim não se encaixava na formalidade, ele precisava de espaço livre. Aliás, mais tarde ele mesmo afirmou:  – “Não sou feito para ser monogâmico”.
            Embora, formalmente, a sessão terminasse, os debates continuavam no intervalo, no cafezinho, nas refeições e nas “rodinhas”. Numa delas, ouvi Paim comentar com Cezar Saldanha que o livro O Poder Moderador na República Presidencial, escrito por Borges de Medeiros (1863-1961), ainda não havia sido estudado a fundo por ninguém. Fiquei curioso. Perguntei a Saldanha se ele me conseguiria o livro. Prometeu-me para o dia seguinte. De posse do livro, não mais assisti às palestras e fiquei lendo-o. Após a leitura, fui conversar com Paim.
            Na ocasião, ele era professor do Curso de Doutorado em Filosofia da Universidade Gama Filho (UGF) do Rio de Janeiro e eu buscava um tema para pesquisar no meu doutorado. Conversamos e ele me pediu para eu fazer um esboço de projeto. Trabalhei no anteprojeto durante todo dia e, à noite, nos encontramos.
            Recordo-me que Paim sentou-se numa classe, concentrou-se e passou, atentamente, os olhos no texto. Ora sacudia a cabeça para frente e para trás afirmativamente, ora balançava lentamente, da direita para esquerda, em forma de dúvida, ou rapidamente em sinal de desacordo. Após examinar o conteúdo, sugeriu alguns retoques e pediu para eu apresentá-lo na seleção de doutorado da Gama Filho. – “Pode dizer que eu serei seu orientador”. O projeto foi aceito e eu me matriculei no Doutorado, tendo como orientador Antonio Paim.


II - As Aulas

            A Universidade Gama Filho fica na Piedade, um bairro pobre da Zona Norte do Rio de Janeiro. O acesso mais prático é pelo transporte ferroviário. O trem da Central do Brasil que leva à Universidade passa por vários bairros: Maracanã, Engenho Velho, Engenho de Dentro, Méier, Deodoro e Piedade. O prédio central da Universidade está encravado numa encosta, embora seu campus esteja distribuído em diversos locais.
            Antonio Paim sempre chegava pontualmente às aulas. Vestia esporte. Sério e cordial se dirigia à sala de aula, acompanhado por nós. Éramos cinco naquela turma. Do Rio Grande do Sul, eu; dois de Minas Gerais; uma colega do Pará e outra do Rio de Janeiro. Todos atuavam como professores de universidades.
            Eu estava muito ansioso. Afinal teria aula com um verdadeiro filósofo. Embora tivesse tido bons professores no Curso de Filosofia, cinco deles se tornaram mais tarde bispos da Igreja católica, Paim, para mim, era peculiar porque não só ensinava, mas também escrevia o que ensinava. Além disso, era um filósofo de referência nacional.
            Em todos os encontros, antes de iniciar a aula, distribuía resumo em forma de esquema. Expunha o assunto em forma dialógica, isto é, apresentava as diversas opiniões sobre a questão, os pontos fortes e fracos de cada um, as incongruências, as diversas conexões que o pensamento possuía. Depois perguntava nossa opinião, começando então o debate. Da mesma forma que a exposição da aula, uma a uma das nossas posturas eram analisadas por ele.
            De vez enquanto mesclava alguma anedota sobre o tema ou o autor. Lembro-me de uma, quando comentava Augusto Comte (1798-1857). Após expor sua famosa teoria dos três estágios da Humanidade e mostrar que nada tinha de positivo, pois era apenas teórico, Paim concluiu:

– Comte até que andava muito bem. Os três estágios tinham alguma coisa de verdadeiro, principalmente se vistos de cima, globalmente. A perdição de Comte começou quando conheceu a tal de Clotilde de Vaux (1815-1846). Aí, não dizia mais coisa com coisa, pois passava o tempo todo só pensando “naquilo”...

            As aulas não tinham rigidez de horário. Quando Paim entendia que o assunto fora suficientemente assimilado, distribuía as leituras para o próximo encontro e nos retirávamos.
            Eu morava na Piedade para evitar gastos e perda de tempo com deslocamentos. Além disso, a Universidade possuía a Biblioteca Central, bem como outras setoriais, como a de Marcelo Caetano (1906-1980) e a de Ivan Lins (1904-1975). De modo que tão logo terminava a aula, podia prosseguir minhas leituras e dar andamento à elaboração da tese.


III - O Abaixo-Assinado

            Como eu, a maioria de nós estava fazendo o doutorado em Filosofia da Gama Filho por causa do professor Antonio Paim. Ele era especial. Estivera nas hostes marxistas, e se “convertera” ao liberalismo. Como professor na Gama Filho, professava a liberal democracia, algo muito incomum naquele período, pois o “normal” entre professores universitários era o marxismo. Ele conheceu o marxismo na teoria e na prática. Seu conhecimento teórico fora adquirido na Universidade de Lomonosov, em Moscou e na Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), na década cinquenta. Na prática e na teoria, conheceu o marxismo in loco. No entanto, foi exatamente a vivência prática num regime comunista que o fez mudar teoricamente de ideologia.
            Ele nos contou numa aula que, na Rússia, necessitara consultar Immanuel Kant (1724-1804) para entender determinada questão. Foi à Biblioteca e solicitou o livro, a Crítica da Razão Pura e a Crítica da Razão Prática. Surpreso, soube que tais livros não poderiam ser consultados. Argumentou que era estudante de filosofia da universidade e a resposta foi que somente poderia ter acesso aos livros com a permissão Partido Comunista. Decepcionado, retirou-se. A partir desse fato, aumentou ainda mais sua curiosidade em relação a Kant. De outra maneira, conseguiu o livro. Após lê-lo, chegou a uma conclusão. A ideologia marxista não tinha nada de científico, era apenas questão moral. Assim, abandonou o marxismo e a Rússia.
            Antes de nossas aulas, nós nos reuníamos em frente ao balcão da secretaria, aguardando o professor: como as crianças hoje esperam a “profe.”! Num determinado dia, ouvimos uma das funcionárias da secretaria falar, quase gritando: – “Porque o senhor, professor Paim, é um grosso”!
            Entreolhamo-nos. O sangue nos subiu à cabeça. Cada um se perguntava como se atrevia alguém a dizer aquilo, logo para o professor Paim. Tomamos, naquele momento, uma decisão: – “Vamos fazer um abaixo-assinado, pedindo o afastamento da funcionária”.
            Se fizemos ou não o abaixo-assinado não importa. O certo é que pedimos para sermos recebidos pelo Coordenador, um professor com sotaque francês carregado. Dissemos-lhe: – “Não admitimos ofensas ao professor Paim. Queremos o afastamento da secretária. Se nossa solicitação não for aceita, nós todos nos retiraremos do curso”.
            Poucos dias depois, a funcionária não estava mais na secretaria.


IV - As Leituras

            Paim tinha o dom de captar o ponto fraco de cada um. Quando isso acontecia, ele marcava um seminário ou apresentação em aula de um autor ou livro e encarregava um de nós para fazer a exposição. Geralmente o encarregado era o que demonstrava o ponto fraco no assunto. Um ex-aluno do professor que, posteriormente, se tornaria um grande discípulo e colega do mestre, Ricardo Vélez Rodríguez, contou-nos que, certa vez, externara certas influências do pensamento tradicionalista da Igreja Católica. Paim não teve dúvidas e incumbiu-o de, na próxima aula, fazer uma apresentação sobre os dois livros de Kant.
            Sabendo que eu vinha da graduação de uma PUC, deu-me por tarefa a leitura e apreciação de Liberdade Acadêmica e Opção Totalitária, de sua autoria. Esse livro versa sobre a escalada totalitária, em surdina, que estava em curso no Departamento de Filosofia da Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). O processo o vem à tona, quando o departamento censura um texto de Miguel Reale (1910-2006) que seria incluído numa coletânea de textos como subsídio à disciplina de História do Pensamento. A professora do Departamento de Filosofia da PUC, Anna Maria Moog Rodrigues, pede demissão da universidade por não concordar com a atitude da chefia do departamento. Com a chegada da questão à mídia inicia-se um grande debate, tanto dentro da universidade como fora, na imprensa escrita e falada.
            Paim acompanhou o desenrolar dos acontecimentos, recolhendo artigos, pronunciamentos, manifestações e publicou-os em forma de livro, com comentários críticos. Distinguiu as posições, as origens e as causas do modelo totalitário em curso naquela universidade. Mostrou que a origem estava na filosofia do padre jesuíta Henrique Cláudio de Lima Vaz (1921-2002) que tentara conciliar uma questão gnosiológica, unindo os clássicos, como Aristóteles (384-322) e Santo Tomás de Aquino (1225-1274), com os modernos Immanuel Kant e Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) no livro de sua autoria, Ontologia e História. Mais tarde, avança a tese de que a cultura é histórica e, portanto, relativa. O problema não está nessa conclusão em si, mas nas suas perspectivas práticas. A partir disso, Henrique Cláudio de Lima Vaz busca, no hegelianismo e marxismo, as ferramentas que levarão a um pensamento totalitário, através da proposta socialista.
            Ao tornar pública a questão, Paim conseguiu que se reorganizassem os defensores do pluralismo e o processo foi abortado. Após minha exposição, Paim me perguntou: – “O que você achou?” Respondi: “Constrangedor”. Paim retrucou: – “Constrangedor? Isso é pouco. Foi uma imoralidade”!
            Eu não poderia imaginar que, dois anos mais tarde, então como coordenador de curso de pós-graduação passaria por uma experiência semelhante no departamento de Estudos Políticos e Sociais de minha universidade.


V - O almoço

            Um dia, após a aula, o professor Paim se aproximou de mim e disse: – “Domingo, vai almoçar comigo”.
            Eu já sabia do que se tratava. Era sobre minha tese.
            Como eu estava no Rio de Janeiro exclusivamente para fazer o Doutorado, procurava adiantar as leituras de minha tese, além das específicas de cada disciplina. Como já foi referido, minha tese versaria sobre o Poder Moderador em Borges de Medeiros. Após ler o que o professor Paim e professor Ricardo Vélez escreveram sobre a questão, procurei fazer uma contextualização histórica do momento. Tive então de me adentrar nos fatos históricos do período. Com isso, percebi a magnitude da crueldade da Revolução Federalista no Rio Grande do Sul. Primeiramente, defrontaram-se os partidários de Júlio de Castilhos (1860-1903) e Gaspar da Silveira Martins (1835-1901) e, mais tarde, os de Borges de Medeiros e Joaquim Francisco de Assis Brasil (1857-1938). De um lado, estavam os chimangos, positivistas, e de outro os maragatos, os liberais. À medida que avançava na leitura dos acontecimentos, uma verdadeira repulsa tomava conta de mim e eu ia perdendo o interesse pelo tema. As cenas de degola eram corriqueiras, de ambos os lados. A ferocidade e frieza dos castilhistas simplesmente me enojavam. Os que caíam nas mãos dos adversários eram encurralados em mangueiras, um a um, laçados e degolados. Isso, muitas vezes, acontecia diante das famílias, na presença de esposa e filhos. Por isso, toda vez que encontrava com Paim, manifestava-lhe meu desagrado pelo tema.
            No domingo, fui de trem até o Méier e, de lá, de ônibus até a Zona Sul. No Leme, dirigi-me ao 2º andar e toquei a campainha. – “Olá! Você está bem? Entre”. – disse Paim.
            Depois do almoço, conversamos bastante. Paim me perguntou sobre as universidades do Rio Grande do Sul, sobre os partidos políticos, governadores, prefeitos e deputados. Eu fiquei impressionado como ele conhecia detalhes sobre o Rio Grande, mormente na política. Após expor-lhe as razões sobre meu desagrado quanto ao tema da tese, ele me falou:

– Você pode mudar de contexto, sem mudar de tema. Por que não faz sobre o Poder Moderador, consagrado na primeira constituição de 1824, no Brasil. Nela, como você verá, a proposta é liberal, pois a intenção é salvaguardar a nação como um todo, através de uma representação suprapartidária.

            Respondi-lhe que achava viável, mas que me desse um tempo para fazer uma prévia exploração sobre a questão. No entanto, já no meu retorno, estava decidido a mudar e aceitar a sugestão de Paim.


VI - Transparência

            Antonio Paim intuía inteligência e a acolhia. O contrário também ocorria. Parecia que imantava as pessoas. Ao natural, os que se aproximavam dele sentiam-se atraídos. Nunca censurava, mas cobrava coerência de todos.
            Uma das pessoas mais caras e conceituadas para Paim era o professor português Eduardo Abranches de Soveral (1927-2003). Esse não só fazia parte do corpo docente, como ele e Paim foram os idealizadores do Curso em Pensamento Luso-Brasileiro. Soveral nasceu em Mangualde, Portugal, no mesmo ano que o professor Paim, doutorou-se em filosofia na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Exerceu suas atividades docentes nessa universidade por vários anos. Inseriu-se no pensamento moderno, estudando Blaise Pascal (1623-1662) e John Locke (1632-1704). A Revolução dos Cravos, em Portugal, a 25 de abril de 1974, enveredou para o comunismo. A partir de então, teve início em Portugal um clima de intolerância e ódio contra tudo que não fosse de acordo com a ideologia comunista. Soveral, que era um acadêmico e preferiu a neutralidade, foi um dos primeiros atingidos pela ação dos revolucionários. Conforme diz Paim: – “Soveral não suportou o clima de intolerância e perseguição mesquinha, emigrando para o Brasil”. A amizade entre os dois foi aumentando até culminar com a criação do curso de Doutorado, em 1989, na Universidade Gama Filho.
            Todos nós apreciávamos as aulas do professor Soveral. Ele nos fazia passear no mundo das ideias. Conseguia estabelecer correlações entre pensamentos aparentemente contrários, bem como percebia e mostrava as antinomias de reflexões supostamente afins.
            Numa de suas aulas, no intervalo, alguém falou que, em Portugal, se escolhiam os sobrenomes pelo local em que a pessoa fora concebida. É óbvio que nossa imaginação começou a funcionar, trazendo os mais excêntricos sobrenomes. Até mesmo onde Soveral fora concebido. Entramos para sala de aula ainda rindo de nossa fértil imaginação. Soveral percebeu nosso alvoroço e perguntou o que tinha acontecido. Depois de relutar um pouco, alguém do grupo lhe contou. – “Isso seria impossível comigo, disse ele, porque, em Portugal, ‘abrantes’ é um arbusto muito claro, transparente. Não daria para se esconder”...


VII - O Capitulo I

            Entre o projeto e a elaboração da tese, há um espaço um tanto incerto, mormente nas ciências humanas. Qual o fio de luz vermelha que nos guiará entre as centenas de alternativas? Entre elas, está a do orientador, uma das mais significativas.
            Minha primeira opção foi dar um sentido constitucional ao Poder Moderador contido na Constituição Brasileira de 1824, isto é, explicá-lo pelas funções a ele atribuídas pela própria Constituição. Dessa forma, procurei os melhores constitucionalistas e as justificativas apresentadas pelos próprios constituintes que haviam cogitado sua inserção na Constituição por influência de Silvestre Pinheiro Ferreira. Convicto, apresentei ao professor Antonio Paim meu primeiro capítulo da tese. Ele deu uma olhada superficial e disse: – “Isto é tese de doutorado?” E me devolveu o trabalho.
            Fiquei surpreso e desapontado. Perguntava-me em que teria falhado, qual era problema, o que deveria corrigir? Parti para outra hipótese: a emergência histórica do Poder Moderador na experiência inglesa. O Poder Moderador seria o poder neutro do rei perante os conflitos partidários.
            Refiz todo o capítulo I, dando-lhe uma interpretação sob o viés histórico. Custaram-me mais três meses. Naquele tempo não havia computador com Word, era tudo escrito, primeiro, manualmente e, depois datilografado. Confiante, apresentei ao professor Paim. Ele novamente deu uma olhada e disse: – “Melhorou um pouco”.
            Comecei então não só a me preocupar, mas também a me irritar. Afinal, o que ele estava querendo? Resolvi explicar o Poder Moderador via sociologia. A sociedade brasileira não possuía um corpo de cidadãos aptos a exercerem livremente a cidadania e, por isso, era necessário criar uma instância protetora. João Camilo de Oliveira Torres (1916-1973) foi meu fio condutor nessa hipótese.
            Entreguei novamente o meu primeiro capítulo para Antonio Paim, meu orientador. Após alguns dias, ele me entregou o trabalho e disse: – “Você não está num curso de Sociologia, mas de Filosofia”.
            Foi uma “marretada” para mim. Peguei o trabalho e saí atordoado. No caminho de volta ao apartamento, tomei a resolução: iria desistir. Não fazia sentido eu estar longe da família, passando trabalho para receber, em troca, três recusas consecutivas do meu trabalho. Cheguei em casa, liguei para a Varig, perguntando se ainda havia lugar para o Corujão da meia-noite para Porto Alegre. A resposta foi positiva. Botei meus pertences na mala, acertei meu aluguel e parti.
            Tive que pousar em Porto Alegre. De manhã, de ônibus fui para Santa Maria. No trajeto, de aproximadamente, quatro horas, surgiu-me uma ideia que, pouco a pouco, tomou conta de mim. Peguei um lápis e comecei a escrever, escrever, sem parar, apesar da dor de cabeça. Cheguei em casa, tranquei-me no escritório e continuei a escrever. Parava só para as refeições. Domingo, à tarde, parei. Passei para máquina de datilografia e escrevi tudo de novo. Quando terminei, resolvi voltar para o Rio de Janeiro. Entreguei, novamente, meu primeiro capítulo ao professor Paim.
            No outro dia, após a aula, ele me chamou e disse:

– Selvino, nem todos os que pedem para eu orientar, eu aceito. Nem todos aos que eu oriento, dou meu aceite. No entanto, àqueles que eu aprovo, eu garanto. Agora sim, está ótimo. É só seguir.

            Levitei.


VII - O Imune

            Um dos amigos mais caros a Antonio Paim era Ubiratan Borges Macedo (1937-2007). Sua pessoa transbordava energia, esparramava ao seu redor uma alegria esfuziante, falava com as mãos. Ubiratan era do Paraná, Curitiba. Formado em Direito e Filosofia, doutorou-se em 1984, antes fizera Pós-graduação em Lovaina, Bélgica. Vinha do mundo católico. Discípulo de Marcelo Caetano, dizia-se um católico liberal.
            Ubiratan era companheiro indispensável nos momentos de descontração, nas confraternizações dos professores e doutorandos. Nesses encontros, conseguia-se saber justamente aquilo que o professor não pode dizer em sala de aula. Podia-se falar à vontade, opinar a favor de algo, discordar, enfim, uma dinâmica libertária.
            Num desses encontros, Paim e Ubiratan conversavam sobre uma turma na universidade. Comentavam que ninguém escapava da doutrinação de um determinado professor. Ele convidava os alunos para as festinhas e os doutrinava para a ideologia comunista. Ubiratan perguntou ao professor Paim:

– Paim, você se lembra do fulano de tal?
– Claro.
– Foi o único que se escapou da doutrinação do professor.
– Lembra-se por quê? Paim perguntou.
– Evidente. Já chegava bêbado às festinhas e de nada adiantava falar alguma coisa para ele hoje, pois amanhã já havia esquecido tudo. Era imune à doutrinação.

            Paim era um missivista perfeito. Ele não só respondia a todas as cartas, como também comentava, completava, corrigia ou elogiava o interlocutor. Ora bilhetes manuscritos que nem Champollion decifrava, ora longas missivas datilografadas discorrendo, exaustivamente, sobre o assunto. Esse era o Paim missivista. Respondia sempre. E não gostava de quem não respondesse a alguma carta sua ou correspondência por ele enviada. Lembro que, certo dia, em aula, opinou sobre correspondência enviada por ele e não respondida pelo destinatário. Comentou: – “Podia ao menos dizer se está vivo ou morto”.
            Eu escrevia muito ao professor Paim e recebia cada carta que era um verdadeiro artigo. Ele esmiuçava tudo, indicava bibliografia, fazia comentários, tirava conclusões ou levantava hipóteses.
            Quando ele escrevia à máquina, eu dava graças a Deus. Devia ser uma Remington pela letra. Se escrevesse de próprio punho, só ele e Deus saberiam o conteúdo. De próprio punho, escrevia bilhetes. Então, éramos eu, minha esposa, filhos e colegas tentando decifrá-los. Quando conseguíamos, dávamos um: “viva Champollion”.
            Se pensarmos que eram dezenas os orientados por ele, sobre os mais diversos temas, podemos ter uma ideia da atividade de Paim como missivista. Uns ocupavam-se de questões éticas, e então, ele indicava leituras de Weber e Kant. Para outros, sobre questões metafísicas, ele indicava Edmund Husserl (1859-1938), para os de questões teológicas, indicava Baruch Spinoza (1632-1677), àqueles, como eu, que tratavam de política, então ele os orientava à leitura de John Locke, Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846), entre outros. Podia-se dizer que Paim era polivalente. Indicava caminho na economia, ética, moral, gnosiologia e outras. Retribuição pecuniária? Nem pensar. Ao contrário, pagava para trabalhar. No entanto, o que se via era a satisfação estampada nos seus olhos quando alguém progredia. Era sua recompensa: a suprema contrapartida.
            Paim era movido por estímulos morais e éticos. Ele era tudo o que Kant e Weber imaginaram no campo da moral e da ética. O reverso completo do estimulo econômico, na teoria e na prática.
            Estavam findando minhas férias do primeiro ano do curso. Recebi uma carta. No remetente: Antonio Paim. Como sempre abri com sofreguidão:

Caro Selvino:
Por motivos que não vêm ao caso, demiti-me da Gama Filho. Você terá que procurar outro orientador. Sugiro o Ricardo.
Abraços: Antonio Paim.
P.S. Você pode continuar a contar comigo.


VIII - O Discípulo

            Antonio Paim e Ricardo Vélez Rodríguez se conheceram na PUC do Rio de Janeiro, o primeiro era professor e o segundo, aluno. Daquele dia em diante, Ricardo sempre foi o discípulo predileto do mestre e fazia-o por merecer. Talvez ninguém como ele tenha assimilado melhor os ensinamentos do professor Paim. Ricardo tinha mais uma qualidade: o dom da palavra, além da escrita. Era irônico, patético, eloquente, sugestivo, profundo, tinha senso comum, tudo dependia do momento. Paim sabia pensar. Ricardo entendia e sabia externar, falar. Ambos se complementavam perfeitamente. Ricardo era natural da Colômbia. Teve uma formação secundária e universitária dentro do meio católico. No Brasil, obteve o título de mestre pela PUC do Rio de Janeiro, com a dissertação que se tornaria o livro: Castilhismo: Uma Filosofia da República, e o doutorado na Universidade Gama Filho, cujo resultado da tese se encontra na obra Oliveira Vianna e o papel modernizador do Estado brasileiro, ambos como aluno e com a orientação de Paim.
            Por isso, minha migração para a orientação de Ricardo não mudava em nada. Foi apenas uma continuidade, além de receber, extraoficialmente a orientação de Paim. A época, eu trabalhava direto na minha tese. Na Biblioteca Nacional, pesquisando as atas microfilmadas da Constituinte de 1823, na Gama Filho, os livros referentes aos primeiros escritos liberais no Brasil, principalmente Silvestre Pinheiro Ferreira, que trata do Poder Moderador. Em nível ocidental, com o inglês John Locke, que aborda o Poder de Prerrogativa, e franco-suíço Benjamim Constant (1767-1830) propondo um quarto poder com o poder Real. Procurava também ver como de fato funcionara esse poder no período de Dom Pedro II (1825-1891), nas grandes questões enfrentadas pelo Brasil, na época: Guerras, Escravatura, Igreja e Estado. Depois verifiquei o grande debate que acontecera a respeito do Poder Moderador entre liberais e conservadores. Quando pensei que concluíra, Ricardo me insinuou:

– Você não quer estudar o Poder Moderador do Borges de Medeiros?
– Não, por favor, enfrentar o positivismo, não! Disse eu. – Quando fizer o concurso para professor titular – prossegui – falarei sobre Borges de Medeiros.

            Em setembro de 1984, apresentei minha tese.
            Quando, ainda hoje, reflito sobre Antonio Paim não saberia dizer qual faceta de sua personalidade seria mais admirável: o mestre ou a pessoa? Como mestre, penso que a partir da década de 1980, no Brasil, dificilmente alguém o iguala. Como pessoa, para quem o conheceu, incomparável. Diante dele, todos eram pessoas.


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