sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Kierkegaard, a crítica ao romantismo e a base da escola existencial. José Mauricio de Carvalho – Pós doutorando em Psicologia da UFJF.

 



Sören Kierkegaard (1813-1855) é um pensador dinamarquês cujas ideias influenciam filósofos importantes do século XX como Miguel de Unamuno (1864-1936) e Martin Heidegger (1889-1976). O núcleo de seu pensamento centra-se no significado da singularidade pessoal, o que dirige seu olhar e atenção para a realidade humana, com ênfase na capacidade humana de escolher e se responsabilizar pela escolha. Essa é uma posição cara aos existencialistas e que o psiquiatra Viktor Frankl considerou o eixo de sua antropologia.  O propósito desse artigo é examinar a crítica que Kierkegaard fez aos filósofos idealistas e literatos do romantismo, isso porque eles dedicavam o principal de suas preocupações ao estudo do processo amplo da história, dando pouco destaque à vida individual e ao papel da responsabilidade moral nas escolhas.

Entre suas obras destacam-se: O conceito de ironia (tese - 1841), Temor e tremor (1843), A alternativa (1843), Diário de um sedutor (1843), O conceito de angústia (1844), Migalhas Filosóficas (1844) e Pos-scriptum às Migalhas Filosóficas.

Vamos destacar além da crítica aos idealistas como suas ideias abriram caminho para a escola existencial no século XX. Sua crítica ao hegelianismo não foi como a marxista, pois o marxismo preservou a dialética e a sustentação historicista da realidade que viera de Hegel, ela atingiu o historicismo romântico de forma mortal. Kierkegaard rejeitou as teses hegelianas porque considerava a vida singular e concretamente vivida na primeira pessoa como o problema a ser esclarecido pela investigação filosófica. Por isso, importava pouco saber os rumos de evolução da razão, abordar a evolução da razão, se tais meditações não consideravam a realidade mesma de cada homem concreto.

O historicismo de Hegel, avaliou o filósofo, pouco tinha a dizer ao homem concreto, aquele que vive numa determinada sociedade durante num período específico da história. Para esse homem que trabalha, apaixona-se, ama, se decepciona, adoece, incorre em culpa, chora, se desespera, a compreensão totalizante do processo histórico diz pouco. E é assim porque na vida vivida na intimidade com seus dramas, o historicismo de Hegel ou o destino glorioso de uma classe social de Marx, dizem pouquíssimo. Pois a vida é o que se faz numa realidade concreta, como mais tarde diria Ortega y Gasset recuperando as lições desse pensador.

Tivemos oportunidade de mostrar no livro História da Filosofia Contemporânea (São João del-Rei: UFSJ, 2014, p. 45/6) que: “uma leitura inicial de Kierkegaard nos coloca em contato com uma reflexão crítica sobre o Cristianismo e seu significado na história dos homens. Ele não deixa de ser um autor cristão, mas de um tipo muito singular. Ele não se preocupa, por exemplo, em fazer interpretação da doutrina, oferecendo uma nova proposta como alternativa. E para onde levou sua reflexão crítica do Cristianismo? Para um desencanto com as interpretações da doutrina cristã feita pelas Igrejas. E qual o motivo da insatisfação? A distância que a doutrina está do homem concreto e de sua vida. Ele rejeita uma interpretação do cristianismo que pouco tem a dizer para quem está envolvido em sua rotina com alegrias e dramas. Sim, porque a vida é um misto de drama e alegria, com peso diferente para homens e gerações, para uns com mais alegria, para outros com mais drama. Tal é o peso da história. Jaspers, no ensaio dedicado ao filósofo, explicou a sua insatisfação com a doutrina cristã apregoada pelas igrejas do seguinte modo (Kierkegaard,1953, p. 90): O que importa é encontrar a verdade, a verdade que seja para mim, pela qual eu queira viver e morrer. Então surge a resolução: agora começarei a atuar interiormente".

Na citação acima Jaspers destacou que a mensagem cristã da forma como é veiculada pelas Igrejas não parecia ao filósofo capaz de comprometer intimamente a pessoa, não era algo pelo qual ela julgasse que valia a pena viver e morrer. E há, portanto, em Kierkegaard esse entendimento que a vida é de tal ordem que necessita ter uma razão, um motivo para levá-la adiante. E por que o cristianismo anunciado lhe parecia tão inadequado e distante da experiência do homem concreto? Por que lhe parecia inútil? Porque o cristianismo anunciado pelas religiões focava a atenção no futuro glorioso da humanidade, resultado da leitura romântica da história cultural da Europa. E aqui surge um problema complicado: até que ponto uma instituição historicamente situada consegue transmitir a mensagem cristã na pureza desejada por seu fundador? Será que defender a mensagem em sua pureza radical sem a base de apoio histórico que a sustenta é razoável? Isso pode ser sustentado numa vida como a humana? (...)

Apesar das dificuldades que essas questões suscitam, Kierkegaard deseja que o conteúdo do Cristianismo ao ser transmitido não seja rebaixado como fazem as Igrejas. Sendo rebaixado ele fica compreensível ao homem comum, mas perde sua profunda realidade renovadora da espiritualidade. Nesse sentido, o filósofo foca sua preocupação no encontro pessoal e direto com Cristo. Esse é o caminho para situar a mensagem cristã no nível de profundidade que desejava. Menos que isso é farisaísmo.

Despreocupado com o discurso das Igrejas, ele propõe o encontro pessoal com o Cristo, aceitá-lo como salvador pessoal ao mesmo tempo que se precisa dialogar com Ele. Levar a Cristo as próprias dores, fome, sede, medos como das guerras, das doenças, do sofrimento, da morte, que marcam a vida de cada um de nós.

E como lhe parece ser a vida? Segue-se a síntese proposta na obra já mencionada: “A imagem do juízo final, em que cada homem está entre tanta gente, mas se mantém absolutamente só diante de Deus é a alegoria que ele usa para dizer como é a vida como a vê e para a qual procura resposta. A vida na qual cada um está só diante de Deus e a ele deve responder. Ele fala para o homem, enquanto capaz de realizar a experiência da solidão verdadeira que é própria de nossa vida. É para essa solidão que ele busca resposta. E resposta para quê? Para o que deveria verdadeiramente nos ocupar quando tomamos consciência de que nossa vida é única e ninguém pode vivê-la por nós, quando entendemos que nossa vida é feita das escolhas muito delicadas e íntimas. Nascemos sós, morreremos sós, escolhemos como viver, e isso é a marca de nossa existência. Assim estamos diante de Deus. Esse tipo de solidão é que ficou mais tarde conhecida por solidão ontológica e não se confunde com o estado de estar isolado dos demais homens, vivendo numa ilha, por exemplo.” (id., p. 47)

Deixando de lado as suas críticas às Igrejas e centrando a atenção no que está na raiz de suas preocupações filosóficas é que nos deparamos com um pensador atualíssimo. Se estamos verdadeiramente sós na experiência da existência, essa realidade nos coloca diante de uma questão a que a meditação diária nos deveria levar: o que significa ser eu mesmo? A simples colocação dessa pergunta torna a vida humana diferente e perguntar parece urgente e necessário, ainda hoje na sociedade de massas mais que no tempo de Kierkegaard. A sua reflexão nos coloca diante do fato de que não teremos resposta para essa pergunta radical se esperamos que nossa vida seja conduzida de fora, se as decisões que temos que tomar tiverem que ser feitas por outrem. A vida assim pensada é aquela que cada um de nós experimenta na sinceridade íntima de ser o que é.

Essa crítica ao romantismo filosófico e literário, que alcança também as religiões cristãs, é apenas um aspecto do seu pensamento. Há muito ainda a dizer dele.


 

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