sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

A QUESTÃO DA TERRA NO BRASIL. Selvino Antonio Malfatti.



A propósito da celeuma em torno da devolução de terras pertencentes aos índios; dos quilombos aos habitados pelos negros; distribuição de latifúndios aos Sem-Terra, é bom lembrar algumas questões, independentes da posição ideológica.



Quando Cabral chegou ao Brasil não encontrou um sistema jurídico no qual se definissem direitos e deveres em relação à propriedade. Os índios não tinham propriedades, apenas territórios onde habitavam. Cada tribo ocupava uma determinada extensão de terras de onde tirava, via coleta, o necessário para alimentação. Dentro deste território também não havia propriedade privada. 
A coroa portuguesa, logo que tomou posse da terra, tratou de instituir um regime jurídico para este imenso território. Dividiu-o em capitanias e dentro delas começou a distribuição de sesmarias, isto é, propriedades privadas. Evidentemente, à revelia dos índios que não foram nem convidados e nem consultados. Foi um ato do poder político de forma autocrática, bastante comum naqueles tempos. Portanto, juridicamente o poder não confiscou a propriedade dos índios por que ela não existia. Ao contrário, implantou a propriedade.


Da mesma forma, os locais onde os negros se refugiavam ao fugir da escravidão, não constituíam uma propriedade, mas um território onde se libertavam. Por isso, também neste caso não havia propriedade e por isso não se pode dizer que atualmente o Estado “devolve” a propriedade ao descendestes dos negros, mas apenas reconhece o territórios onde residiam, dando-lhe foro de propriedade.




Já com os Sem-Terra ocorre uma reivindicação de uma propriedade já existente, portanto, diferente do caso dos índios e negros. Neste caso, o Estado desapropria um e transfere a propriedade para outro titular.  Aqui sim, há uma propriedade que passa de um sujeito para outro. Para melhor elucidar a questão trazemos um olhar de um estrangeiro, focando o questão dos Sem-Terra no Brasil.
O livro “Função Social da Propriedade e dos Latifúndios Ocupados”, do Professor Mário Losano, da Universidade Degli Studi di Milano, aborda a questão agrária brasileira, a qual envolve vários atores: políticos, juristas, latifundiários e Movimento dos Sem-Terra, negros e índios. Embora se restrinja aos Sem-Terra, as teses podem ser aplicadas aos outros atores. A problemática analisada pelo autor procura evidenciar os limites entre estereótipos e realidade das questões: está o Brasil cheio de latifúndios improdutivos? Os excluídos das periferias urbanas podem se tornar agricultores? A pequena propriedade campesina pode ser auto-suficiente? Quantos realmente são os sem-terra? Quantos são os latifúndios improdutivos? Faz sentido ocupar os latifúndios, mesmo os produtivos, e dividi-los em pequenas propriedades? Faz algum sentido a monocultura num país que luta contra a fome? Quanto custa ao Estado, e por extensão à sociedade, um processo de assentamento? É possível um modelo de reforma agrária para todo o Brasil? Pode continuar a Igreja católica alimentar um exército de sem-terras acenando-lhes para uma duvidosa “Terra Prometida”? Em vez de prometer “terra para todos” não seria melhor incentivar um convívio entre “agrobusiness” e uma agricultura familiar?
Para expor e discutir estes assuntos Losano divide o livro em cinco capítulos. Os dois primeiros, “Diário Seletivo de Dois Meses Normais” e “Política Agrária e Reforma Agrária” preparam a grande discussão que acontece no capítulo terceiro: “A Ocupação das Terras Improdutivas e o Movimento dos Sem-Terra”. Este é o capítulo central, pois discute os fundamentos filosófico-jurídicos que alimentam a ideologia dos Sem-Terra, dos latifundiários e do governo. O capítulo refaz com maestria a trajetória genética dos Sem- Terra: opção preferencial pelos pobres, teologia da libertação, Comunidade Eclesial de Base, Pastoral da Terra, Movimento dos Sem-Terra e Partido dos Trabalhadores. A fundamentação filosófica do Movimento dos Sem-Terra –MST- reside na tradicional Doutrina da Igreja católica do direito natural. Conforme esta doutrina a terra é de Deus e Este a deu a todos. A Doutrina da Igreja católica defende que o direito à terra é inerente à natureza humana por obra do Criador. Para os Sem-Terra este direito natural é reforçado pelo dispositivo constitucional afirmando que a terra tem uma função social e que as terras improdutivas são passíveis de desapropriação. Os latifundiários apegam-se ao “sagrado” direito de propriedade de conformidade com a filosofia liberal e argumentam que o dispositivo constitucional ainda não foi regulamentado. O governo, por sua vez, em voltas com a eficácia, necessita seguir os trâmites processuais para desapropriação e posterior assentamento. Em síntese: o Movimento dos Sem-Terra apóiam-se num argumento teológico; os ruralistas apegam-se ao jurídico e o governo age politicamente. Esta é a problemática com seus desencontros e conflitos e discutida pelo professor Losano. O Movimento dos Sem-Terra, estribado nestes dois suportes, um filosófico-religioso e outro filosófico-jurídico, lança-se à ocupação (na versão dos sem-terra) e invasão (na versão dos ruralistas) de terras supostamente improdutivas. Os ruralistas ingressam na justiça pedem a reintegração de posse. O Partido dos Trabalhadores –PT- que na origem do Movimento dos Sem-Terra foi o grande incentivador e mesmo financiador - atualmente é governo e diante disso opõe-se à ação dos Sem-terra. Este é um dilema tanto para o governo como para o Movimento dos Sem-Terra. Se pressionar o governo está deixando em apuros antigos e atuais companheiros, se o governo acua os Sem-Terra está rasgando bandeiras que o ajudou a eleger-se.


Postagens mais vistas