sexta-feira, 28 de novembro de 2025

Onde depositar a esperança? José Mauricio de Carvalho

 



No livro Retropia (2017) Bauman examinou uma mudança na compreensão do tempo como destino da esperança humana. A modernidade sólida, como se indicou no item anterior, apontava o futuro como destino natural da esperança e nele depositava a confiança de alcançar melhores dias. A tradição filosófica desde Agostinho alimentou um pouco essa convicção de um futuro melhor.

No livro Mauá e a ética saint-simoniana mostramos alguns momentos fundamentais da compreensão triádica da história que laicizou a esperança judaico-cristã que propusera a crença em um Reino de paz no futuro. E mostramos a contribuição do Joaquim de Fiori e Giambattista Vico, esse último já na modernidade para a consolidação dessa disposição numa linguagem mais filosófica. Vico entendia que (CARVALHO, 1997, p. 181): “a história compunha-se de uma sucessão dos ciclos cujo motor seria a providência divina.” A compreensão triádica presente em Fiori e sua esperança no futuro foi laicizada por Saint-Simon e Georg Hegel, entre outros representantes do pensamento moderno. Na Introdução à história da filosofia (id., p. 184): “Hegel tematizou o progresso do Espírito e o seu movimento. Retomou o referencial de Vico e enxergou na história dos povos um movimento cíclico.” A esquerda e direita hegeliana continuaram a usar o esquema triádico e ele foi também acolhido por Augusto Comte e outros positivistas. Todos confiando num futuro melhor que o passado. No positivismo a ideia de história foi associada a ordem e progresso inexorável da história, ou seja, uma vida melhor amanhã que hoje como sendo o destino do gênero humano.

Um exemplo da mentalidade triádica, no século passado, encontra-se no livro Palavra de Homem. Ainda na década de setenta, o autor daquela obra, o filósofo francês Roger Garaudy definiu o passado como (1975, p. 130): “um campo de recordações e de nostalgia dos fatos (isto é, de coisas feitas, de atos cristalizados em objetos e instituições)”. O passado não era o lugar da esperança, mas da saudade pois a alegria habitava as terras do devir, como ele explicou filósofo (ibidem): “o futuro é um feixe de projetos, de possíveis, de esperanças, de liberdade, pois temos ainda a escolher entre possíveis e criar outros.” E o texto seguiu cheio de confiança num futuro melhor, desde que construído com responsabilidade, pois não se podia mais admitir um devir de sonhos, como no século XIX, à parte do esforço de cada pessoa. Essa consciência crítica tornou-se própria de um tempo, em (id., p. 131): “que os fatos, em história, são o que foi feito, e feito pelos homens.”

Na síntese do sociólogo (BAUMAN, 2017c, p. 62): “o futuro é um reino de liberdade (tudo pode acontecer por lá), à diferença do passado, o reino do imutável e da inevitabilidade inalterável), o futuro em princípio é maleável.”

O livro Retropia identificou, na consciência contemporânea, uma mudança do lugar da esperança. Nossos dias modificaram a perspectiva, ela não mais estaria num futuro a ser construído, como na crença de Agostinho e Fiori e nas utopias positivista e marxista, mas num passado fantasiado (id., p. 8): “o século XX começou com uma utopia futurista e acabou com nostalgia.” E o mais complicado dessa visão é que se trata de um passado fantasiado. A mistificação do passado substituiu a esperança do futuro. De todo modo ele foi tornado maleável para que fosse possível administrá-lo. O sociólogo explicou (id., p. 10): “hoje estão emergindo retropias: visões instaladas num passado perdido/roubado, abandonado, mas que não morreu, em vez de se ligarem a um futuro ainda todavia por nascer.” E como devemos entender o conceito? Bauman o apresentou como (id., 13): “a negação da negação da utopia. É um derivativo que compartilha com o legado de Thomas More a fixidez num topos territorialmente soberano.”

O lugar da esperança que migrou do futuro para o passado precisa, contudo, de um mínimo de estabilidade. Não dá para conviver com algo (id., p. 64): “teimosamente ausente, o chão firme sob os pés – chacoalhados como são hoje por ondas cruzadas de mensagens que se fraudam e se cancelam umas às outras.” E foi por isso, em busca de um novo ponto de segurança que ocorreu (id., 14): “a reabilitação do modelo tribal de comunidade; o retorno ao conceito de um eu primordial/prístino predeterminado por fatores não culturais e imunes à cultura.”

Esse lugar de esperança e paz coloca em questão a proposta do livro Leviatã de Thomas Hobbes, uma vez que aquele filósofo confiava poder controlar a violência com a força do Estado. No entanto, ao contrário, ela permaneceu viva, sempre pronta a explodir. Assim, o verniz civilizatório e as forças do Estado apenas foi cobrindo aqueles comportamentos mais animalescos, mas sem tocar na brutalidade original, que permaneceu intacta. Isso apesar dos instrumentos do Estado para assegurar a construção de uma civilização pacífica. Pois bem, é essa capacidade do Estado de cumprir o papel que Hobbes lhe designara que hoje está em questão. O enfraquecimento do Estado, já tratado em outros capítulos, aumenta a insegurança das pessoas. Em outras palavras (id., p. 25): “o Leviatã se mostra incapaz de expressar a fronteira que ele próprio estabeleceu entre violência legítima e ilegítima de maneira realmente confiável. Além do mais, um Estado cujas fronteiras são facilmente violáveis é uma contradição completa e isso vai se tornando comum.”

Contribuindo para ampliar o clima de insegurança, aumenta no mundo o comércio de armas leves, pouco controladas pelos Estados, apenas preocupados com as armas de destruição em massa. E assim (id., p. 51): “graças a globalização, à separação e ao divórcio dela decorrentes entre poder e política, os Estados hoje estão se tornando não muito mais que vizinhanças amplas. Elas estão confinadas no interior de fronteiras apenas vagamente demarcadas, porosas e fortificadas com ineficácia.” E é assim que no interior dos Estados surgem tribos, que se identificam e estabelecem novas regras sobre quem faz parte e quem não faz daquele grupo. Até porque uma vizinhança cheia de estrangeiros aumenta a sensação de insegurança e provocou o recrudescimento do nacionalismo. Bauman resumiu essa nova realidade afirmando que o que o tipifica (id., p. 54): “é o deslocamento de um anseio de independência em relação a uma sociedade constituída por indivíduos.”

Quando ao mal e violência praticado contra os estrangeiros da tribo isso tem em vista oferecer prazer num mundo ávido por oportunidades de gozo. Pois poder fazer o mal (id., p. 67): “nos dá prazer liberar nosso poder sobre outra pessoa e experimentar a agradável sensação de superioridade.” E assim, o ódio ao estranho a nossa tribo, tornou-se capital político que passou a ser explorado por governo populistas.

Dessa forma, a esperança no devir migrou para o passado e alimentou um discurso conservador que guarda muito de anacrônico, além de permitir a emergência do nacionalismo quando ele parecia em declínio desde a queda do nazismo.

 

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