sexta-feira, 15 de março de 2024

Recuperar o Humanismo. José Mauricio de Carvalho



Não é novidade dizer que passamos por uma crise de cultura. Dezenas de intelectuais repetem isso desde o século passado. Zygmunt Bauman entrou nesse assunto mostrando que a sociedade de massas, descrita por diversos autores sendo Ortega y Gasset é o mais conhecido, era alegoricamente descrita como: 'leve', 'líquida' e 'fluida'. O que ele queria dizer? Que vivemos dias em que a sociedade se ajusta a forma do momento, sem manter antigas configurações. Não há formato ou fatores estruturantes no meio social, disse Bauman, a sociedade funciona como um líquido que assume a forma do recipiente. O diálogo com o passado é fraco ou inexistente, especialmente com os valores. Tudo é passageiro nesses nossos dias, dos bens consumidos aos amores vividos. Amores duram o tempo do prazer e desaparecem nas primeiras dificuldades. O que é trágico para tantos pode ser traduzido na singela fórmula do ficar e resulta nas relações ou casamentos em série. Essas mudanças bruscas produzem dificuldades e sofrimento pessoal e elas são maiores para aqueles que mais precisam do apoio dos costumes e instituições. 

A crise foi tema de muitos livros de Bauman. Em Babel Bauman e Mauro, coautor da obra, olharam a depressão econômica de 2008, perceberam que ela acelerou as mudanças que já estavam ocorrendo. Ela acelerou os processos: estimulou a competição em detrimento da solidariedade, enfraqueceu os sistemas de proteção social e de garantias do trabalhador, atribuiu os fracassos profissionais unicamente à falta de talento ou capacidade dos indivíduos, reduziu o planejamento de longo prazo e o poder econômico se afastou e se sobrepôs à política, os estados nacionais perderam força e a violência se reproduziu dentro e fora dos Estados Nacionais. 

As mudanças deixaram de lado os valores e a tradição humanista que funcionavam como a coluna vertebral do ocidente. Porém hoje, os movimentos da economia, a tecnologia e a revolução da comunicação nesse mundo global não dependem mais nem da linguagem escrita, nem da tradição intelectual, nem dos valores, nem da história que identifica essa cultura. Não precisa de nada disso para justificar a formação dos Estados Nacionais e da produção econômica. Por isso todos esses elementos, que tínhamos como identificadores do que éramos, caíram em desprestígio sendo retirados do sistema educacional oficial de muitos países e colocados no altar do desprestígio. 

No entanto, sabemos que aquilo que fornece identidade ao homem é o seu passado, não como um presente eterno, mas como aquilo que mostra do que fomos feitos, do que nos construiu e forneceu matéria-prima para enfrentar as novidades que a vida vai trazendo. E assim, a forma que temos para enfrentar os desafios das situações-limite (sofrimento, doença, culpa e morte), ou ainda a barbárie e a ignorância, que andam para além das rotinas do dia a dia é o diálogo com isso que nos teceu. 

A compreensão de quem somos nos faz perceber que a consciência de nossos limites naturais aponta para os valores historicamente elaborados, o que significa na prática considerarmos o respeito ao outro e sua dignidade como objetivo de vida e a fraternidade como possibilidade. Disse-o Immanuel Kant de forma singela. E deixou-nos o desafio de criar a defesa da humanidade como um valor para nos salvar da barbárie, das ilusões, da ignorância, do fanatismo, esses filhos de nossos dias. Esses filhos nos deram netos que se denominam: anticiência, antirracionalidade, fundamentalismo religioso e político, nacionalismo apodrecido e anacronismo. 

O humanismo é uma forma de referir-se à humanidade como valor e realçar a capacidade que temos de amar. 

sábado, 9 de março de 2024

O LEGADO ROMANO DA PROPRIEDADE PRIVADA. Selvino Antonio Malfatti

 




Há algumas semanas o governo federal ressaltou importância da concessão do título de propriedade a centenas de pessoas das favelas de Cantagalo e Pavãozinho do Rio de Janeiro.

Como a propriedade, outras instituições como a família, casamento, língua, política, arquitetura e engenharia, mas, sobretudo o direito são heranças dos romanos. Se pode dizer que pensamos, agimos, sentimos e falamos romano todo dia.

A propriedade romana era a base do sistema eletivo. Era essencialmente censitária. A população romana dividida em classes censitárias. Cada classe devia comprovar determinado rendimento. A primeira classe deveria ter 100.000 asses, até a quinta com 12.000 asses. Em seguida vinham os proletários e os “capite sensi”. As votações obedeciam a ordem das classes nas assembleias. Em que pese o monumental mundo institucional dos romanos, incluído a propriedade, herdamos também defeitos como guerras, corrupção, patriarcado, machismo entre outros.

As novas pesquisas atuais se concentraram nos monumentos, construções como aquedutos inclusive nos povos subjugados, respeito pelas religiões locais, línguas, economias e costumes. Nisso consistiu a força romana tornando os povos vencidos futuros aliados. A maior concessão foi o título de cidadão romano aos homens adultos do império pelo imperador Caracalla. Os pesquisadores, porém, têm o cuidado de separar o mito da verdade. Um caso típico de mito é a fundação de Roma por Rômulo e Remo.

O grande cuidado que se deve ter é de não utilizar as categorias atuais identificando-as com as da época. Isto tornaria a pesquisa anacrônica. Foi isto que levou vários pesquisadores a conclusões completamente equivocadas. É o caso das categorias livre e escravo ou o conceito de mercado. Para Max Weber não havia propriamente um mercado livre. Por isso boa parte dos pesquisadores propõe comparar com as economias pré-industriais da China e Índia.

O ser livre ou escravo era uma condição que variava de tempo e lugar. Por exemplo, o diretor da biblioteca de Atenas, quando conquistada pelos romanos era um escravo. O escravo só não tinha a liberdade, e nem propriedade, mas de resto vivia como os demais. Com  Alexandre Magno o mundo romano entra em contato com o império romano difundindo seu modus vivendi e operandi, e mesmo cognoscendi. O mundo oriental estava na fase protoindustrial e o comércio exterior resumia-se em permutas. Tinham trabalhadores livres e assalariados, mas com estatuto social muito baixo. Recebiam porções alimentares em troca de trabalho. O mundo grego conheceu a pequena propriedade, mas havia também as grandes propriedades de senadores e cavaleiros ilustres. Isso foi incorporado a Roma que enveredou para a autocracia e burocracia do modelo persa.

Na Idade Média Santo Tomás considera a propriedade uma questão de justiça como estímulo para bem cuidá-la e aproveitá-la. Dizia ele: quanto mais comum for algo tanto menos se cuida. Fundamenta seu pensamento inserindo a propriedade como um direito natural, com fins sociais devido ao princípio de justiça que rege a questão da propriedade privada.

A maior revolução na questão da propriedade adveio com John Locke. Este derivava a propriedade da própria pessoa humana. Esta seria a primeira propriedade da qual derivariam as demais pelo trabalho. Por isso que os bens materiais, se vindos do trabalho, eram uma propriedade sagrada da pessoa.


sexta-feira, 1 de março de 2024

judaísmo evangélico. José Mauricio de Carvalho





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Há cerca de quinze anos algumas igrejas evangélicas fizeram uma conversão em direção ao Primeiro ou Antigo Testamento. Para a teologia cristã isso é algo inusitado não porque os dois testamentos não tragam a revelação da mesma fé, mas porque o Profeta de Nazaré, cujos ensinamentos são a base do Segundo Testamento, não é um profeta qualquer, mas o próprio Filho de Deus. Nessa condição e sendo Aquele para quem todas as coisas foram feitas, coube-lhe proceder os ajustes, aprofundamentos e, sobretudo, atualizações dos ensinamentos contidos no Primeiro Testamento escrito em mil anos de História. Portanto, para os cristãos, a direção é sempre do Primeiro para o Segundo Testamento, pois cabe ao Segundo esclarecer o Primeiro.

Assim, o inusitado movimento merece um esforço de compreensão. Embora seja um fenômeno complexo e que envolve certamente outros aspectos, parece que duas razões podem explicar esse movimento teologicamente inesperado e inapropriado. A primeira tem a ver com os tempos que vivemos. Autores como Paul Valéry e o sociólogo Zygmunt Bauman, mostraram que a sociedade contemporânea perdeu suas referências axiológicas e se tornou um tempo onde não se consegue herdar referências especialmente éticas e ficou a cada um a tarefa de conduzir, por sua conta e risco, sua existência. Tarefa que para a grande maioria é complexa e eles não conseguem resolver. Bauman diz, de forma metafórica, que a vida nas últimas décadas tornou-se líquida e o mundo deixou de ser um lugar acolhedor para peregrinos. O peregrino é aquele que sai de um lugar sabendo para onde está indo, mas nosso tempo não permite mais isso. O mundo hoje pode ser comparado a um deserto como ilustração de um lugar sem nenhuma estabilidade. No deserto, as pegadas se apagam com facilidade, os ventos mudam a paisagem, tudo fica diferente rapidamente. O mundo das coisas duráveis e estáveis ficou para trás. Ele foi substituído por um outro, um lugar (Vida em Fragmentos, sobre a ética pós-moderna, Rio de Janeiro: Zahar, 2011p. 121): “de objetos descartáveis projetados para sua imediata obsolescência. Num mundo assim as identidades podem ser adotadas e descartadas com uma mudança de costume.” Assim mudam amores e crenças.

Um tal mundo não tem estabilidade ou consistência, nada mais está realmente assegurado e os costumes mudam todos os dias. Nesse mundo em mudança não se jura lealdade a nada ou ninguém. Em outras palavras, o presente agora experimentado foi separado do passado e do futuro, vive-se apenas ele. Assim, um livro que contém uma rigorosa pauta de costumes serve aos propósitos conservadores porque pode ser usado para justificar não propriamente condutas morais atualizadas para nossos dias, mas uma forma de viver que era própria de outras sociedades ou tempos que são magicamente recuperadas e justificadas com o sagrado.

Além da pauta conservadora há nesse movimento em direção ao Primeiro Testamento uma outra justificação nada cristã. Trata-se de um empoderamento da classe sacerdotal compreensível apenas num povo em organização como os judeus que saíram do Egito, sem vida social arrumada, autoridades leigas etc. Enfim, eles tinham uma estruturação teológica da vida social onde a religião era a guia da sociedade e os líderes religiosos (Moisés é o protótipo) eram também os líderes civis e militares, cabendo-lhes ditar o ritmo da vida. Isso lhes conferia um poder usado para cobrança de taxas e dízimos para assegurar o culto. Com o tempo o poder sacerdotal foi usado para controlar a sociedade e enriquecer essa classe a ponto de Jesus lhes condenar abertamente em diversas oportunidades. Isso não porque não se possa fazer oferendas para sustentar o culto, mas porque aqueles religiosos passaram a extorquir a sociedade pedindo ofertas muito além do necessário para essa finalidade. E olha que naquele momento cabia aos sacerdotes várias responsabilidades que não estão entre seus atributos na sociedade atual, como a de declarar alguém livre de doenças e em condições de retornar ao convívio social. Esse poder agrada especialmente alguns pastores que usam dessas igrejas para enriquecer e fazer fortuna, claramente na direção contrária aos ensinamentos de Jesus de Nazaré. Assim, é melhor se afastar do Filho de Deus e recuperar textos de um momento em que o povo de Israel andava nômade pelo deserto ou, pelo menos, carecia de uma organização social mais consolidada.

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

O PENSAMENTO PEDAGÓGICO DE JACQUES RANCIÈRE. Selvino Antonio Malfatti.

 

                                        Foto Lana Lichtenstein

Desde os mais remotos tempos do pensamento ocidental é posta a questão da igualdade, como Sócrates Platão e Aristóteles. Na Idade Média a questão foi resolvida como igualdade em dignidade. Já na Idade Moderna provavelmente Jean-Jacques Rousseau tenha sido a maior expressão, com a igualdade natural. Com a Revolução Francesa ocorre um divisor ideológico: os da “esquerda” da Assembleia – grupo barulhento e exaltado, os literatos e os da “direita”, moderados e ponderados, cientistas iluministas. Os de esquerda passaram a designar os liberais e os de esquerda de socialistas, estes partidários da ideologia da prioridade da igualdade e aqueles da liberdade.  

  Mais adiante Marx a coloca a igualdade social e econômica. A partir daí a celeuma não se estingue: para a direita política a desigualdade é natural tendo em vista a individualidade. Para a esquerda é apenas um preconceito que emerge do pensamento da direita. Jacques Ranciere foca a questão da igualdade atrelando-a à educação.

O leiv motiv do pensamento de Jacques Racière encontra-se na experiência de um professor de francês, Joseph Jacotot, que na Holanda deveria ensinar aos alunos o Francês quando nem ele, nem os alunos, nada sabiam da língua. Aos alunos teria dado um texto bilíngue, Telêmaco, e solicitado por meio de intérprete que escrevessem em francês o que bem entendessem sobre o texto.

Ficou esperando o pior: que os alunos escreveriam tudo errado e distorcessem o texto. Mas qual não foi sua surpresa quando os alunos se saíram bem na tarefa.

Este fato mexeu com as teorias de Jacotot sobre o ato de ensinar. Os alunos haviam aprendido uma língua sem que ninguém lhes ensinasse sobre gramática e seus fundamentos. Por si mesmos haviam buscado as palavras francesas e combiná-las comas frases, com ortografia e gramática aumentando de exatidão à medida que avançavam no texto.

Com base nesta experiência Rancière elabora toda uma metodologia e mesmo uma teoria pedagógica. Conforme ele o professor que ensina é um opressor, um embrutecedor, pois parte do princípio de que ele, professor é sábio e o aluno ignorante. Para tanto é preciso embutir na mente do aluno os conhecimentos que o tornarão no futuro outro embrutecedor.

Isto porque, pressupõe como ponto de partida a desigualdade originária. Por que há um superior, professor, e um inferior, aluno. O primeiro ensina e o segundo aprende. Esta desigualdade é infiltrada de tal forma incutida no aluno que ele se sente inferior e isto continuará pela vida toda até que se torne um embrutecedor. Por isso em vez de o professor ensinar deve analisar.

A pedagogia tradicional, conforme Rancière, ao partir do pressuposto da desigualdade, incute a desigualdade como natural que só a educação fará buscá-la. Por esta concepção a igualdade é uma meta, e não um ponto de partida conforme Racière propõe.

Para que a igualdade originária possa ser efetiva deve-se ter em mente duas inteligências iguais com vontade próprias. A inteligência é uma capacidade de relacionar, observar, comparar, calcular e explicar como se fez. Quando não se deixar o aluno a fazer isto ou aquilo se estará embrutecendo e matando tanto a inteligência como a sua vontade.  

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

A ética e sua estrada. José Mauricio de Carvalho

 


                                                  

Depois de considerar em Vida em Fragmentos, sobre a ética pós-moderna, obra de 1995, a necessidade de se chegar a compromissos morais mesmo quando não se tem um sistema ético disponível, Bauman voltou ao assunto em 2008, quando elaborou A ética é possível num mundo de consumidores?

O pano de fundo dessa obra é o mesmo da anterior, vivemos um mundo onde as mudanças rápidas, intensas e profundas não param de nos surpreender. Esse mundo de significativas mudanças não oferece garantias de que as coisas terminarão como começaram o dia. E aí também temos algo já dito na obra anterior (BAUMAN, A ética é possível num mundo de consumidores? 2011 b, p. 8): “planejar um curso de ação e se manter fiel ao plano, esta é uma empreitada cheia de riscos, porque a ideia de planejamento a longo prazo parece muito perigosa.”

Para repensar os movimentos que vê acontecendo na sociedade, Bauman mencionou uma experiência feita com vespas no Panamá. O experimento mobilizou especialistas notáveis e um grande número de equipamentos sofisticados. O que parece, pela descrição, um experimento banal levou a uma conclusão inusitada e muito a propósito do que Bauman considera seja um fenômeno atual (id., p. 11): “Ao contrário de tudo o que sabia (ou acreditou) havia séculos, a equipe de Londres descobriu no Panamá que uma razoável (56%) das vespas trabalhadoras muda de ninho ao longo da vida, se desloca para outras colônias não apenas como visitantes temporárias e indesejadas, discriminadas e marginalizadas, sempre suspeitas e alvejadas pelo ressentimento; elas mudam-se como membros plenos e legítimos.”

O experimento mostrou que o processo migratório dentro de comunidades de animais sociais revela que a mistura de indivíduos é norma, sem que isso seja forçado ou estimulados por governos ou instituições. Em contrapartida, a construção de grupos nacionais na modernidade, forjando uma identidade comum, exigiu esforço e anos de luta e lavagem cerebral da sociedade. Esse movimento foi visto em diferentes nações europeias. Na França, por exemplo, o esforço pretendeu alcançar pessoas (id., p. 13): “que raramente tinham lançado um olhar, muito menos chegado a viajar além das fronteiras do Languedoc, de Poitou, Limousin, da Borganha, Bretanha ou do Franco- condado. (Porém lhes disseram) todos os franceses são irmãos, por isso, por favor comportem-se como irmãos.” Logo a construção das nações modernas foi uma elaboração artificial. E dada a sua realidade atual e necessidades de hoje esses povos estão dispostos a assimilar os estranhos que chegam para facilitar sua vida de trabalho. Esses grupos (id., p. 17): “absorvem os recém-chegados sem atrito e não sofreram qualquer avaria por conta de saída de alguns moradores.” Por isso, avalia Bauman, as tentativas de atuar como nas antigas nacionalidades não tem mais capacidade de mobilizar os grupos. As nações atuais estão assim mais parecidos aos abacates com um pequeno núcleo duro do que com os cocos cuja casca é rígida e impermeável. Porém, se o processo se intensifica muito, o problema da segurança do grupo começa a incomodar e muitos membros abandonam o desejo de liberdade e da natural mistura para se sentirem mais protegidos fechando as fronteiras. Apesar dessa dificuldade, Bauman avalia que caminhamos para uma organização mais próxima dos enxames que de grupos organizados à moda dos antigos Estados (id., p. 22): “enxames não são times; eles desconhecem a divisão de trabalho. São (...) não mais que a soma das partes, ou antes agregados de unidades automotrizes, unidas apenas pela solidariedade mecânica.”

E o que essa realidade aponta? Por outras razões para a liquidez. Assim ele combina esse novo argumento aos anteriores apontando na mesma direção. O resultado é que as relações humanas já não têm proteção de instituições sólidas. Elas são vistas cada vez mais como entidades anacrônicas, proclamando uma moral fora de sintonia com a sociedade e incapazes de entender os novos dias, interferindo indevidamente na liberdade das pessoas. Por outro lado, essa liberdade aspirada e ausência de estruturas obriga cada sujeito a encontrar o seu caminho de forma livre e densa, capaz criar uma vida que se mostra digna de excelência, o que é um desafio difícil como descrevem os filósofos da existência. Essa experiência pede balizas se não podemos contar mais com nacionalidades fortes e impermeáveis. Como isso é uma realidade de difícil realização, o caminho mais viável para não cair no anacronismo ou numa vida sem futuro e passado, é construir a trajetória singular a partir de valores que são atualizados pela experiência histórica encontrando um caminho entre a singularidade existencial e a atualização axiológica como se aponta na obra O Homem e a Filosofia, pequenas meditações sobre a existência e a cultura.

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

O POLARISMO BOLSONARISMO X LULSIMO. Selvino Antonio Malfatti

 



Vários pensadores brasileiros, antes da obra “Structure e Institutions Politiques”, (Dois Brasis), de Jacques Lampert, de que o Brasil de fins do século XIX, não era culturalmente monolítico, mas uma colcha de retalhos. Com efeito, havia o norte com predominância da cultura indígena, o centro-oeste devido à miscigenação com forte influência negra, o sul marcado pelo domínio espanhol.

Esta diversidade regional não impede de ter uma cultura nacional desde que o pluralismo seja o convívio pacífico de diferentes etnias, cosmovisões e moralidades consensuais.

Esta pluralidade cultural acompanhou o país desde o período colonial até nossos dias. Quando colônia, o Brasil foi habitado por portugueses, povo este que abrigou os judeus e mouros. Já na independência juntaram-se os negros e índios. Mais tarde, já no final do século XIX vieram os italianos, alemães, poloneses, árabes e outros povos.

Há alguns que lamentam tal pluralidade de etnias com suas respectivas culturas. Mas isto não é um problema. O que é negativo é querer reduzir tudo “ad unum”, a um pensamento único, um totalitarismo  cultural, a redutibilidade mental ao pensamento único.

Ninguém nega que são necessários alguns princípios e valores comuns, neste caso uma lei comum externada na constituição. A síntese disto se resumiria num respeito inegociável: à dignidade e à liberdade da pessoa e à igualdade de direitos. O contrário seria a ditadura de um partido, de uma classe ou categoria. Mas salvo isto, é benéfica a pluralidade.

No Brasil atual paira no firmamento uma grande nuvem negra. É a polarização entre dois grupos políticos. Não que a polarização em si seja maléfica. O preocupante é o radicalismo. Vamos dar nomes: de um lado está o bolsonarismo e de outro o lulismo. O primeiro é identificado de direita e o segundo de esquerda. Esta disputa pela hegemonia vem de longe, digamos mais precisamente com Getúlio Vargas. O período sucessivo foi marcado pela ascensão do trabalhismo, fundado por Getúlio – o Partido Trabalhista Brasileiro- –PTB-  neste caso o trabalhismo se identificava com o positivismo de esquerda e o getulismo conservador de direita. A radicalização dos dois levou à autodenominada Revolução de 64. Foram então quinze anos de semi-ditadura cujo fim foi a Constituição de 1988. Sucedem-se governos vacilantes marcados por partidos eleitoralmente fracos que precisavam de alianças pecuniárias para governar.

È neste contexto que o lulismo conquista o poder que faz um governo marcado pela tomada do poder de pontos estratégicos – instrumentalizar a sociedade - mormente o ensino superior em maior escala nacional em seguida o médio e primário como consequência da formação docente universitária.

O polarismo lulismo-bolsonarismo nem se pode caracterizar como bipartidarismo, porque foge à divisão ideológica. Ambos são fisiológicos, pois dependem de alianças prevendo vantagens pecuniárias. E muito menos pluralismo cultural. É aquilo que Maquiavel previa: ao findar o interesse de uma parte a aliança pode ser desfeita.

O preocupante de tudo isso é que instalou-se o radicalismo: não há ambiente de parte a parte para diálogo. O fanatismo substituiu a razão. E com isso " é inútil fazer alguém abandonar pelo raciocínio o que não adquiriu pela razão". (Sócrates)

 

 

 

sábado, 18 de novembro de 2023

Uma fé amadurecida


José Mauricio de Carvalho

Nossa vida diária encontra-se cheia de vazios de explicação racional. Convivemos com eles é inevitável. Quantas vezes nos deparamos com pessoas que encontram a cura para doenças terminais depois de um diagnóstico terrível, ou, ao contrário, morrem em situações banais. No primeiro caso milhares de outros casos parecidos levaram ao pior desfecho e no segundo quase todos se salvaram sem problema. Quantas vezes conseguimos realizar coisas extraordinárias que nem supúnhamos possível e outras não conseguimos realizar coisas banais, dessas que já havíamos feito inúmeras vezes. O nosso conhecimento está cheio de lacunas e nossas possibilidades na relação com o mundo não se restringem à explicações racionais fornecidas pela Ciência e pela Filosofia.
Porque nossa compreensão do mundo é limitada e a verdade fundante das outras (da Ciência, da Filosofia, da Religião) não se alcança de forma completa, filósofos como Ortega y Gasset nos mostraram que vivemos por crenças como inspiração de vida, isto é, a força daquelas ideias que não possuímos mas que, ao contrário, nos possuem. Somos delas, a elas entregamos o melhor que temos, nossa dedicação, nosso amor, nossa fidelidade, nossa esperança. Frequentemente elas se tornam o propósito de nossas vidas. Autores como Martin Heidegger nos mostram que uma vida não será humana se não tiver um propósito e Ortega que ele não se esgota na razão.
Homens como Viktor Frankl nos mostraram ainda mais. Que nossas crenças nos mantém saudáveis, melhor ainda quando ela se refere a Deus. Quantas vezes, nos relatou Viktor Frankl, em meio aos terríveis sofrimentos nos campos de concentração um simples pensar em algo distante hidratava a alma. Uma oração que levasse para longe dali e para perto de Deus ela enchia a vida de esperança. Uma prece que fizesse lembrar de um Deus capaz de inspirar o amor no sofrimento, a confiança noutra vida e a certeza de que no final de contas, em meio à miséria do mundo, justiça e bondade prevalecerão.  Ou, ainda, de modo mais singelo, que a lembrança levasse para longe fisicamente dali, em direção a sua antiga casa, para a mesa do café quente, para o bolo quentinho da esposa, para a cama macia e a delícia de dormir em lençóis limpos depois de um banho quente, do abraço no neto amado, enfim para o convívio das pessoas queridas, para relações de amor enfim. Quantas vezes a razão de viver pode estar numa fé sobrenatural ou numa crença qualquer muito além das explicações da razão.  
No dia a dia, a vida do homem é um que fazer constante. Nela um presente sem futuro não é outra coisa que a prisão num passado limitador, mas nossa existência traz a possibilidade de ser diferente do que já foi. Esse ser diferente na esperança e no esforço da renovação trazido pelo sentido ou busca. Sentido pode ser também a recuperação de um passado valioso e significativo, quando estamos diante da necessidade de dar alento a uma vida que está extinguindo. E o sentido é não somente preenchido por explicações sobre o mundo, mas pelo grande sentido de Frankl pelo que nos leva além do dia a dia, para a transcendência e talvez a Deus. 
Deixar aberta a porta do entendimento aceitando que não sabemos tudo, não conseguimos resolver tudo, não realizamos tudo é prudente e razoável. Nossa razão não pode tudo e não resolve tudo. Porém, ela é nossa força, nossa parcimônia e capacidade de propor limites à irracionalidade, à maldade e a ignorância. Assim, o deixar a porta aberta para a transcendência não significa abrir-se à irracionalidade, o mergulhar na transcendência não equivale a aceitar a superficialidade, nem pode deixar de lado a pesquisa e o estudo sistemático dos fenômenos. Deixar as crenças serem guiadas pela fé irracional, nos conduzirá a lugares sombrios e lúgubres como o mostram vários momentos da história, na inquisição, nas guerras, no totalitarismo do nazifascismo e stalinismo no último século. Por isso nossa sociedade, quase sempre, evita tratar assuntos que apontam além do imediato, admitir o papel das crenças ou a importância dos aspectos transcendentes que embelezam e nutrem a vida, mas podem levar ao mal. Assim, que a abertura aos aspectos transcendentes, venham para nós junto com a pesquisa, com uma fé meditada, com boas possibilidades, que nos abra a porta do céu, mas não nos tire da terra firme representada pela razão e suas explicações.

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