sexta-feira, 14 de junho de 2024

Um capítulo curioso da modernidade líquida José Mauricio de Carvalho

 






Vamos tratar, neste texto, do impacto que a crise de cultura teve na vida sociopolítica do ocidente. Sabemos que o Estado Moderno se consolidou depois de forte empenho de seus líderes centrais. Como parte da consolidação do poder centralizado firmaram-se inicialmente padrões de medida, distância, superfície e volume que promoveram a uniformização de procedimentos necessários à centralização conduzida por monarcas absolutos. Essas práticas serviram para dar uniformidade de procedimentos em benefício da administração central.

A atuação do Estado precisava ter uma padronização capaz de assegurar homogeneidade de procedimentos para promover uma atuação uniforme do poder central em todo o território. Por isso, Bauman comentou no livro Globalização que (Rio de Janeiro: Zahar, 1999, p. 37): “o que estava em jogo na principal batalha dessa guerra era o direito de controlar o ofício cartográfico.” Esse controle significava que o poder central precisava que fosse reconhecida sua interpretação das fronteiras contra qualquer outro entendimento que dele retirasse parte de seu território ou o colocasse fora de sua administração. Isso fazia todo sentido dentro do propósito de centralização do poder contra uma forma de poder regionalizado ou feudal que vigorou durante a Idade Média.

A diferença de representação do território significava a afirmação do poder central, em detrimento da perspectiva dos cidadãos e significava a afirmação de um olhar sobre todos os outros. E a diferença precisou ser superada à força, pois (id., p. 39): “nem toda criatura humana ocupa o mesmo lugar e, portanto, contempla o mundo da mesma perspectiva, nem todas as visões se equivalem.” O esforço de imposição da visão do poder central permitia superar as diferentes perspectivas que produziam os diversos modos de representação do território.

A centralização do poder pode ser identificada com o processo de modernização, que significava tornar hegemônica e eliminar toda representação do espaço que não aquela do monarca absoluto. Assim, o processo consistia em impor que a leitura do espaço fosse feita a partir do mapa oficial e não o contrário, isto é, deixar que a representação do espaço fosse elaborada a partir de olhares locais.

A construção dos Estados pela implantação de um plano de centralização e racionalização administrativa acabou sendo projetado também para as cidades. Técnicos e governantes criticavam os urbos espontâneos da Idade Média e propunham como alternativa as cidades planejadas, conforme um código já existente no século XVIII que estabelecia, na reprodução feita por Bauman, que (id., p. 43): “serão erguidos armazéns públicos para guardar todas as provisões necessárias e com salas de reuniões públicas – tudo uniformizado e de aparência agradável. Fora desse círculo serão dispostos regularmente os distritos urbanos – todos do mesmo tamanho, de forma similar e divididos por ruas iguais.” 

Os habitantes dessa cidade teriam habitações conforme suas ocupações e responsabilidades, formando quarteirões mais sofisticados que outros, embora todos assegurando a dignidade dos moradores. A organização da cidade precisava considerar também as funções de trabalho, vida doméstica, compras, culto, esporte, etc. Quanto ao lixo humano produzido, a saber, velhos improdutivos, doentes em geral, pessoas com transtornos mentais, eles serão recolhidos em instituições próprias e isoladas das cidades. Todo esse esforço de controle e planejamento não tinha correspondência com a realidade existente.

O esforço descrito significava um novo planejamento da vida social e política pela razão, como ocorria em outras partes da vida cultural. Temos um esforço moderno para racionalizar a criação e uso do espaço nacional e urbano, inclusive dele afastando o lixo humano. Esse esforço foi confirmado no século passado com a arquitetura moderna onde nomes célebres como Le Corbusier ratificaram a proposta de planejamento urbano e (id., p. 49): “proferiu uma sentença de morte contra as cidades existentes – refugo podre de história rebelde, descuidada, infeliz e urbanisticamente ignorante.”

A crise que assistimos alcança essa área da cultura devido a grandes mudanças na vida social com a globalização da economia e, paradoxalmente, com o fechamento das fronteiras nacionais a migrantes vindos de áreas de guerras ou pouco desenvolvidas constantes nesse momento da história. O afastamento dos setores produtivos da realidade local retirou o compromisso da elite econômica com os problemas do povo, esse permaneceu, ao contrário, vinculado aos locais onde habita. Por outro lado, o enfraquecimento dos processos econômicos minou a sustentação do Estado do Bem estar social e promoveu a ascensão da extrema direita em diversos países do mundo ou mesmo na União Europeia como acaba de ocorrer.

 

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