sexta-feira, 2 de outubro de 2020

O romantismo filosófico, a emergência da história e forças naturais. José Mauricio de Carvalho – pós-doutorando do PPGPsic. /UFJF

 



A modernidade consagrou a nova ciência e a técnica como grandes feitos. Essa nova ciência se tornaria crescentemente importante, fornecendo ao homem tanto a sensação de maior controle da vida, como as bases de um novo humanismo, pautado na experiência sensorial e conhecimento racional. Deus passou a ser concebido como grande matemático universal ou um programador que fazia o universo funcionar como um grande relógio. Em outras palavras vemos emergir, especialmente entre os empiristas (iluministas britânicos) e entre os enciclopedistas (iluministas franceses) um humanismo laico. Assim, entre os séculos XVI e XVIII, durante quase três séculos ganhou força o racionalismo, especialmente a razão experimental. Isso quer dizer que embora a fé religiosa continuasse importante, as categorias para se referir a ela caíram em desuso e essa crença perdeu relevância na compreensão do mundo. Foi o que levou Martin Buber a referir-se à modernidade como o tempo do eclipse de Deus.

O ponto de chegada da modernidade foi Immanuel Kant, que apontou o caminho da superação dos impasses do cartesianismo, aproximando a razão experimental dos movimentos internos da razão. A Crítica da Razão Pura foi a obra magistral onde ele apresentou uma forma de conhecimento denominado sintético a priori, no item VII da introdução da Crítica da Razão Pura (São Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 36). Esse conhecimento reunia os dados da experiência com uma nova maneira de compreender a razão. Dessa forma, o mundo não era simplesmente transposto de dentro para fora da consciência, nem amarrado a ela por uma mágica divina, mas resultado da atividade da consciência. Essa solução epistemológica de Kant valorizou a vontade e propôs uma nova forma de metafísica, comparada à revolução copernicana no prefácio da segunda edição da obra (id., p. 14). O resultado foi igualmente a abertura de uma nova senda para o humanismo, concebida sobre a vontade e esse pensamento meta-empírico utilizado para explicar a arte e as criações humanas. E assim, ao explicar as razões para a validade das ciências, ao propor a autonomia da vontade e ao estabelecer uma nova visão da história, Kant plantou as bases de uma nova forma de pensar.

Kant é considerado o mais brilhante pensador da modernidade por solucionar os impasses do subjetivismo cartesiano (resolver o debate entre racionalistas e empiristas), defender de forma inquestionável a atividade criadora da razão individual (iluminismo), e ainda deixar aberta a investigação sobre valores e história, natureza e beleza. O tripé presente em sua obra: a capacidade criadora da razão, a valorização da vontade como responsável pelas ações humanas e o historicismo, é a base do romantismo. O movimento teve vertentes literária, estética e filosófica. Dessa forma, os princípios teóricos do romantismo embasam uma nova visão de história, literatura, arte e filosofia. E, da mesma forma que o iluminismo teve características próprias no seu desenvolvimento na França, Portugal, Alemanha, Inglaterra, etc., o romantismo filosófico teve diferenças nas formulações tradicionalistas e mais próximas do catolicismo na França, Itália, Portugal e Espanha e no conhecido idealismo alemão. Em todas essas concepções românticas encontramos a mesma valorização da religiosidade e de seus mistérios, da força incontrolável da natureza, da história e do papel importante do passado como tecido da vida. O movimento alimentou o compromisso humano com uma dimensão profunda e desconhecida do homem, combateu a vida medíocre, e alimentou os sentimentos presentes nos grandes feitos românticos e na apreciação estética. Por isso o romântico, homem apaixonado, é capaz de grandes sacrifícios por tudo aquilo que o apaixona.

A reunião desses temas forjou um dos mais importantes movimentos filosóficos da tradição filosófica: o idealismo alemão. Entre seus principais representantes os herdeiros diretos de Kant: Fichte, Schelling e Hegel. Esses autores preservam do kantismo o valor da razão, da história, da vontade, mas reorganizam a meditação de modo a eliminar aquele dualismo que Kant deixara entre o fenômeno (id., p. 33): “o objeto indeterminado de uma intuição empírica”, e a coisa-em-si ou nõumeno (aquele restante incognoscível que a metafísica antiga e medieval tentou apreender). Afinal, se o mundo era o que a consciência pensava ser, então a razão se identificava com a realidade, o que é real é o racional. Se não era apreendido pela razão individual, o era por aquela forma presente em toda a humanidade, uma razão absoluta, diria Hegel. E aqui novamente a herança de Kant, se o filósofo das Críticas concebeu um sujeito transcendental, como sendo a forma comum de pensar de todos os homens, o produto dessa subjetividade era uma razão universal completa e histórica, alimentada de forma poderosa pela vontade.  Está aí a base do idealismo alemão. Seu resultado foi o entendimento de que aquilo que se chama realidade é o resultado do pensamento e, de certa forma, cria a realidade na medida em que tudo o que existe é produto da atuação da razão. Dessa forma, como sintetizaria Hegel, o principal representante desse idealismo, o mundo é racional. Racional porque a razão cria o mundo (o concebe como fruto da razão histórica), compreende a natureza (com a ciência) e impõe lhe impõe valores.

O movimento realça a vida concreta contra a compreensão de homem abstrata do iluminismo e olha para a realidade mesma do homem na história, que fornece os elementos para compreensão de cada época. O romantismo também destaca as produções espirituais da humanidade organizadas em diferentes grupos nacionais, encontrando no folclore e histórias populares uma espécie de alma dos povos, elementos estruturais de sua alma. É no romantismo que surge a ideia de uma filosofia da história, trabalhada inicialmente por Johann Herder, um ex-aluno de Kant e vizinho de Goethe. Esse último é o maior expoente do humanismo estético. O poeta e filósofo Friedrich Schiller é quem melhor sintetiza arte, literatura e filosofia partindo da ideia de intuição estética da obra de Kant e concebendo o homem como a união de liberdade e determinismo, razão e instinto, individual e universal, com conceitos que se sintetizam na dialética hegeliana de síntese dos opostos. Nesse processo os instintos devem ser elevados e educados e não condenados como fez Kant na Fundamentação da Metafísica dos costumes.


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