sexta-feira, 22 de maio de 2020

Imprensa Morbosa. José Mauricio de Carvalho – Academia de Letras de São João del-Rei.



Em 1917, o filósofo espanhol Ortega y Gasset escreveu um pequeno e provocador ensaio sobre os rumos da democracia espanhola, denunciava um plebeísmo triunfante que tomara conta da Europa e que representava uma degeneração da democracia. Isso porque, deixando de representar uma forma de organização política, tornava-se expressão de massas adoecidas que queriam dirigir o destino da cultura. A democracia (ORTEGA, Obras, v. II, p. 135): “estrita e exclusivamente como norma de direito político, parece ótima coisa. Porém, uma democracia fora de si, a democracia na religião e na arte, a democracia do pensamento e do gesto, a democracia no coração e nos costumes é o mais perigoso morbo que pode padecer uma sociedade.” Em resumo, uma democracia que queria ser o que não era tornava-se doentia.
Em 2020, em meio a pandemia do coranavirus, a imprensa brasileira, especialmente sua mais bem equipada rede de comunicação, mostra-se adoecida, como a antiga democracia espanhola, deixando de cumprir o que dela se espera. Da imprensa sadia se espera que aponte os crimes contra a sociedade e a própria humanidade, mas que o faça no estrito compromisso com a verdade, porque a verdade é não só o esteio da dignidade humana, mas a base da vida social. Isso lembrando que uma verdade social e política somente pode ser buscada em conjunto, com a exposição isenta e ponderação das interpretações. Karl Jaspers lembrava que (JASPERS, Introdução ao pensamento filosófico, p.97): “na comunidade o curso das coisas se torna falso quando o homem cala o que é importante para todos.” Sem a apresentação equilibrada das diversas posições não se forma opinião pública madura e os homens se tornam superficiais e ignorantes da verdade.
Uma das maiores falhas da imprensa é quando ela engana as pessoas (e aos próprios jornalistas) mistificando a violência que é a mentira e a manipulação dos fatos. Essa distorção da verdade ocorre quando ela não divulga objetivamente os fatos e os comentários não apresentam as interpretações dele. Além de uma espécie de imprensa partidária, outros males a acometem. Uma grave doença revela-se quando ela se comporta como consciência moral da opinião pública, o que ela decididamente não é, porque ela não é isenta. Além do mais, consciência moral é pessoal, que pode e precisa ser educada, mas não é instância social. O que se vê quando jornalistas andam pelas ruas a acusar o cidadão de não cumprir o isolamento sem saber exatamente o que cada um anda fazendo e porque está fazendo. À Justiça cabe velar pelo cumprimento das leis, não à imprensa. Embora seja fundamental a imprensa denunciar crimes. Note-se crimes, não o que os jornalistas ou seus patrões consideram errado.
Outro morbo dessa imprensa é o sadismo. Seus profissionais repetem, com requinte de detalhes, tudo o que há de pior, os crimes mais pavorosos, os fatos mais horríveis e fazem isso continua e repetidamente durante horas e dias. É um gozar no sofrimento. Quanto maior a desgraça, mais ela é repetida e divulgada. Essa doença é como o vírus da covid, se espalhou rápido entre as várias mídias e emissoras.
Não se pode esquecer também a doença da bobice pura e simples, isto é, divulgação de fatos privados de artistas como coisas de grande interesse público do tipo: Fulana se bronzeia durante a quarentena, aquela outra exige corpaço e faz graça de biquíni, esse cantor pede namorada em casamento no confinamento, etc.
Seria fundamental para a Democracia que a imprensa se comportasse sadiamente. Que ela com a mesma intensidade com que reivindica respeito quando criticada cumprisse seus deveres. A impressa somente é fundamental para a democracia quando cumpre seu papel de divulgar com isenção, comentar com equilíbrio, não gozar na e da desgraça, abdicar da bobice e não se arvorar em consciência moral da sociedade, etc.

Postagens mais vistas