sábado, 5 de outubro de 2019

A ÉTICA ESPIRITUALISTA DE ANTÔNIO PEDRO DE FIGUEIREDO. Tïago Adão Lara - Professor aposentado da UFU – Uberlândia – MG – Brasil



Parece esclarecido, para os pesquisadores do pensamento brasileiro, que a reflexão filosófica, de caráter já genuinamente nacional, configura-se a partir da nossa independência política, nos inícios do século XIX. Tivemos, sim, ensino de filosofia e produção de obras, consideradas filosóficas, no período colonial. Tudo, porém, como reflexo da vida cultural da metrópole, e nos moldes da segunda escolástica, interpretada e vivenciada segundo ditames da contrarreforma. O surto moderno de renovação cultural, que a partir do Renascimento começara a configurar-se na Europa, e que alcançou Portugal na época do Iluminismo, sob o governo do Marquês de Pombal, teve atuação bastante restrita e, entre nós, foi de pouca ressonância.
A independência política do Brasil, contudo, evidenciou, de maneira até aguda, as urgências de repensar a convivência nacional. A própria dinâmica histórica, que levou o país à autonomia, operou-se já sob a influência de outro clima cultural, aquele que resultou na Revolução Francesa e na Independência americana.
A Igreja Católica que, em Portugal e no Brasil, de parceria com a monarquia portuguesa, se constituíra instância última de definições e de transmissões de valores, encontrou-se, na época, num período crítico. De um lado, as autoridades de Roma cobravam remodelação geral da vida eclesial, exigindo uma independência com relação ao Estado, em favor da igreja; independência desconhecida, até então, no mundo ibero-americano. De outro lado, urgia a formação de uma eliteclerical, afinada com a política ultramontanista de condenação da modernidade, considerada negação de toda ordem cristã. Um impasse se criava e era preciso contornar a situação difícil.
Da reflexão filosófica se pedia, então, aquilo que já vinha acontecendo na Europa, ou seja, bases sólidas, para uma concepção eticopolítica, não mais dependente dos ditames da fé cristã, mas baseada na luz natural na razão.                  Nesse impasse ideológico e nesses inícios de recomposição institucional dos poderes religioso e político, no Brasil, é que surgiu, entre nós, a corrente eclética de pensamento, ou melhor, a tendência eclética em filosofia. Ela tem uma história longa, no Ocidente. Emerge no mundo greco-romano, após o período áureo da reflexão filosófica, no mundo helênico. Pleiteou, então,constituir-se como resultado da escolha seletiva do que de “verdade” se encontrava, nas várias correntes filosóficas existentes. No século I d.C. Potamon de Alexandria dava a seu pensamento o nome de ecletismo. Outros pensadores, sem adotar o nome, aceitaram sua metodologia. Antíoco de Ascalón, mestre de Cícero, pertencente à Nova Academia, tentou superar o ceticismo da Escola, apelando para o antigo dogmatismo platônico. Para afirmar algo como provável (afirmação da Nova Academia) urge um critério de verdade que, para Antíoco, é a concórdia entre os filósofos. Na Idade Média, vários autores cristãos são considerados ecléticos, como é o caso de Justino, Clemente, Orígenes e Lactâncio. O critério que comanda, para eles, a escolha seletiva das verdades filosóficas a admitir é, em última instância, a concordância com, ou a possível adequação às verdades por Deus reveladas.
Essa tradição adequava-se com a situação nacional. A formação cristã da nação brasileira era por demais arraigada e evidente, para se pensar uma elaboração cultural toda outra, desconsiderando séculos e séculos da história luso-brasileira. Por outro lado, fortes e evidentes se tornavam também os apelos para a abertura às doutrinas que estavam fazendo a glória dos progressos modernos e constituíam fundamento de um mundo novo.
A tendência eclética entre nós tentou, pois, uma conciliação entre as bases cristãs da cultura brasileira, herança de tradição lusitana, e a necessidade de um avanço. Filiou-se, assim, ao movimento francês de pensamento, ligado a Hegel, através do historicismo de Cousin e Jouffroy. A problemática ética encontra-se no centro das preocupações dos ecléticos. Os motivos são bem claros, como tentamos elucidar, no início da nossa fala. Para a construção de um Estado sólido, urgia a solução de um impasse criado pelo surgir de nova perspectiva histórica, diante da antiga, originada e defendida no Cristianismo. O gancho que permitia reencontrar, em bases racionais e, até, com certa pretensão de cientificidade, a dimensão ética e religiosa da existência humana colocara-o Maine de Biran. Inicialmente ligado ao materialismo de Condillac, Maine de Biran, como afirma Henry Goutier, em Dictionnaire des Philosophes, evade para uma posição prepositivista, afirmando a aderência aos fatos, mas, ao mesmo tempo, reconhecendo a existência de um sentido íntimo de apreensão do mundo da vida, especificamente humana, como capacidade de ter iniciativa de ação. Escreve Goutier: Maine de Biran constata que na (expressão) eu sinto, o eu que se afirma como o que sente é um sujeito ativo, cuja gênese não pode se encontrar a partir de sensações passivas, ligadas ao mundo dos objetos. A consciência do eu emerge de um “sentido intimo” que, por sua vez, emerge com o “sentimento do esforço motor voluntário”; assim, eu quero levantar o braço: a iniciativa vem de mim (vontade) e ela provoca um movimento, em meu corpo (motricidade). Duas vidas, portanto: a vida animal, essencialmente passiva...; a vida humana, essencialmente ativa, a do sujeito que toma a iniciativa, mas de um sujeito não separado do seu corpo, já que suas iniciativas desencadeiam movimentos; meu corpo é, então, enquanto corpo, objeto dado pelos sentidos externos e estudado pelas ciências da natureza, enquanto meu (corpo) ele é conhecido a partir do interior e participa da subjetividade.
A esse gancho agarraram-se pensadores brasileiros. Em A filosofia brasileira de Antonio
Paim, editado em Lisboa em 1991, lê-se: a familiaridade com a doutrina da Escola Eclética é alcançada graças a ida a Paris, nos anos 30 (do século XIX) de dois jovens, em busca de uma alternativa tanto para o sensualismo, com quem se tinha familiaridade, como para o espiritualismo renascente, mais afeiçoado com o ciclo da denominada Escolástica decadente.
Os dois jovens foram: Domingos José Gonçalves de Magalhães, do Rio de Janeiro, e Salustiano José Pedrosa, da Bahia. Na França tornaram-se, os dois, discípulos de Theodore Jouffroy, “cujo magistério Magalhães exalta em correspondência com Monte Alverne, desde que se revela digno sucessor de Royer Collard e último discípulo de Cousin”. Em Pernambuco, as ideias de Cousin tornaram-se conhecidas, de maneira mais fundamentada, pelo fato de Antônio Pedro de Figueiredo ter-se dado ao trabalho de traduzir e publicar, em um volume, em 1843, a obra de Victor Cousin, intitulada Introdução à história da Filosofia e, logo em seguida, em dois volumes, o Curso de História da Filosofia.  Escreve: “Em Pernambuco, Antônio Pedro de Figueiredo reúne, em seu derredor, diversos intelectuais e, em pouco tempo, a única opção com que se defrontará será a tradicionalista”.

quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Tiago Adão Lara. José Mauricio de Carvalho – UNIPTAN e UFSJ





Faleceu na quinta-feira passada, dia 26 de setembro de 2019, o Prof. Tiago Adão Lara, pesquisador, filósofo, teólogo e estudioso da filosofia brasileira. Era natural de São Tiago – micro região de São João del-Rei. Nasceu em 24 de maio de 1930. Fez os estudos de filosofia no Seminário Salesiano de São João del-Rei e, no exterior, teologia em Turim entre 1953 e 1957 e especialização em filosofia na Universidade de Louvain, Bélgica (1971). Retornando ao Brasil tornou-se professor da Faculdade Dom Bosco de Filosofia, Ciências e Letras, mantida pela Congregação Salesiana. Concluiu o mestrado na PUC/Rio em 1976 e o doutorado na Universidade Gama Filho/Rio em 1982.
As informações fundamentais dessas referências encontram-se em Contribuição contemporânea à História da Filosofia Brasileira (Londrina: EDUEL, 200, 605 p.). O comentário sobre as ideias de Tiago Lara está no capítulo 3, item 5, letra p.
Em 1981 ingressou, por concurso, no Corpo Docente da Universidade Federal de Uberlândia, jubilando-se em 1991. Desde então transferiu-se para Juiz de Fora, onde se tornou colaborador do programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora, como professor visitante. Trabalhou também no CES – Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora, onde lecionou filosofia na graduação e filosofia da educação no programa de Mestrado em Educação.
Seus interesses de pesquisa eram a filosofia brasileira e história da filosofia ocidental. Seus trabalhos mais importantes na área da filosofia brasileira são (CARVALHO, 2001, p. 360): “As raízes cristãs do pensamento de Antônio Pedro de Figueiredo (1977), Corrente eclética na Bahia (1979), Pombal e a cultura brasileira – em coautoria e Tradicionalismo católico em Pernambuco (1988). Como historiador da filosofia ocidental publicou: A filosofia nas suas origens gregas (4. ed. 2001), A filosofia nos tempos e contratempos da cristandade ocidental (1999), A filosofia ocidental do Renascimento aos nossos dias (7. ed. 2001). Tiago publicou ainda o polêmico livro A escola que não tive... o professor que não fui (2. ed. 1998) e um importante trabalho de teologia intitulado Experiência da finitude e apelo de transcendência parte do livro A sedução do sagrado (1998). Além desses trabalhos maiores publicou mais de vinte artigos em revistas especializadas, dos quais os mais significativos são: O pensamento de Vicente Ferreira da Silva em dialéticas das consciências e O republicanismo autoritário no Brasil, ambos na Revista Brasileira de Filosofia, fascículos 99 e 103 respectivamente, Humanismo e cultura (1989) e Universidade, cultura e religião (1988) na Revista Educação e Filosofia. As comunicações e conferências em Congressos acadêmicos somam mais treze trabalhos já publicados.”
Há outras referências importantes sobre Tiago Lara no item que lhe dedicou Antônio Paim em O estudo do pensamento filosófico brasileiro (2. ed. de 1986) e o verbete do Dicionário Biobibliográfico dos Autores Brasileiros da Coleção Básica Brasileira do Senado Federal (1999).
Como já foi assinalado, na condição de (id., p. 361): “historiador da filosofia, Tiago não se limitou a relatar a evolução do pensamento filosófico no ocidente. Ele fez também isso com precisão e cuidado, atualizando e revisando seus textos em edições sucessivas. No entanto, o projeto de Tiago foi muito mais ambicioso, ele pretendeu relatar os caminhos da razão no ocidente, mostrando como essas referências teóricas foram importantes nos acontecimentos humanos, porquanto marcaram o modo como o homem se pensava em diferentes momentos de nossa história.
Quando olhamos a cultura ocidental contemporânea muitas vezes perdemos de vista a sua historicidade. Os livros de Tiago nos recolocam no clima certo, mostram um pouco do processo formativo que fez do ocidente o que ele é hoje, uma civilização baseada nos ensinamentos cristãos, na organização jurídica romana e na compreensão racional da vida principiada na Grécia Antiga. Ele explicou porque para a formação do ocidente muito contribuíram a paidéia grega e a mensagem evangélica. Paidéia é uma forma de sabedoria que dá sentido à existência e no mundo grego encontrou na filosofia sua expressão mais vigorosa. A sabedoria evangélica também contém um tipo de conhecimento especial, oferecendo elementos para organizar e ordenar as ações humanas. Esses elementos foram combinados no principiar da história desta parte do mundo que denominamos de ocidente cristão, cuidando o nosso pensador de restringir suas considerações a uma parte do que foi elaborado pelo espírito humano. O legado oriental, ele fez questão de indicar, não foi examinado com maior cuidado.”
Como pesquisador da filosofia brasileira fez sua dissertação de mestrado sobre Antônio Pedro de Figueiredo. (id., p. 364): “Ao avaliar desse modo a filosofia elaborada por Figueiredo, Tiago precisou o modo como o ecletismo aproximou-se da mensagem cristã em nosso país. Ele também deixou claro que a solução encontrada pelo ecletismo mostrou-se frágil quando levada para o terreno moral. Melhor dizendo o tradicionalismo pretendeu fundamentar o que o ecletismo não conseguiu: a moral social. Coube então ao tradicionalismo suprir-lhe as deficiências”.
O estudo sobre o tradicionalismo foi sua tese de doutoramento (id., p. 361/2): “Tiago precisou as características assumidas pelo tradicionalismo em Pernambuco e, ao fazê-lo, ajudou a entender o movimento. No seu entendimento, o tradicionalismo pernambucano revelou-se pouco preocupado com os problemas sociais e econômicos, concentrando sua atenção na reforma moral da sociedade conduzida pela Igreja. Isso significava uma rejeição do projeto liberal de constituir uma ordem social laica. De uma perspectiva filosófica aceitam as teses básicas dos tradicionalistas europeus, especialmente as ideias tomistas. De uma ótica religioso-eclesial mostram-se partidários incondicionais do Pontífice Romano e voltados para as orientações de Roma. Para Tiago isso representa um desconhecimento do movimento histórico, pois essa ordem não mais tinha meios de ser mantida. No campo político negam a origem contratual da sociedade, entendem como imperfeita e limitada toda autoridade humana, apostando na origem divina do poder.
A exata localização histórica do movimento foi feita como se segue: constitui-se o tradicionalismo em Pernambuco (...) num movimento católico, leigo, conservador, pós-eclético e pré-neo-escolástico (LARA, Tiago. O tradicionalismo católico em Pernambuco, Massangana,1988, p. 142).
Tiago foi também um notável teólogo e deixou vários textos nesse campo. Para ele a experiência de Deus é concreta, não é uma especulação pura, abstrata e teórica, mas (id., p. 367): “nasce da vida humana concreta, das circunstâncias presentes e no horizonte da cultura. Somos temporalidade e qualquer referência a Deus não pode superar esse fio do qual somos tecidos. Por isso, Deus, por mais transcendente que o possamos conceber, revela-se para nós na sofrida imanência da vida dos povos e de cada um de nós.
As meditações de Tiago sobre Deus revelam um compromisso com os altos ideais que seguem a existência do homem e, nesse sentido, iluminam e dão visibilidade ao seu trabalho de historiador da filosofia e de filósofo.
Pelo acima indicado, os estudos de Tiago Lara constituem um capítulo importante de nossa compreensão dos problemas suscitados pela filosofia brasileira e das soluções que ela encontrou para eles. Essa assertiva é especialmente válida se nos deparamos com o modo como foi apreciada a herança cristã, que é uma das características fundamentais de nossa origem cultural.”


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