sexta-feira, 26 de junho de 2020

É possível querer o mal? José Mauricio de Carvalho – Academia de Letras de São João del-Rei


No livro Imagens do Bem e do Mal, Martin Buber mencionou dois momentos marcantes onde se tratou o problema do mal frente a uma realidade Absoluta ou Deus. No oriente e na antiga Grécia acreditava-se que os homens e deuses habitavam a mesma terra e deviam viver sob as mesmas leis, formando uma única comunidade. Os pré-socráticos tinham, por verdade inquestionável, a submissão do homem à essa ordem sagrada do mundo e à necessidade de expiar as culpas quando se desobedecia tal ordem. Platão pensava diferente, mas não venceu a posição tradicional e os sofistas que vieram depois dele promoveram profunda crise cultural ao relativizar os valores e colocarem o homem como medida das coisas. As dúvidas dos sofistas promoveram verdadeiro caos no mundo antigo. A outra tentativa de abordar o mal diante de um Absoluto foi feita pelos hebreus. Eles aceitavam que as leis oferecidas ao povo no Sinai eram divinas e desobedecê-las levava ao castigo. Nesses casos, o vínculo entre o religioso e o moral só pode ser considerado se o homem for livre e responsável para obedecer a essas leis. Nisso está a base da autonomia e liberdade humanas pela qual o homem faz escolhas. E essas escolhas comportam a possibilidade de escolher o mal.

O citado livro de Martin Buber nos apresentou como se compreendia o Bem e do Mal no mundo antigo diante de uma exigência absoluta, o que inaugurou o problema da realidade do mal. Para tratar disso a Bíblia associou duas tradições distintas, uma mais própria dos povos semitas que falava na queda para o mal a partir das escolhas humanas (episódio da desobediência de Adão e Eva no Éden) e a outra vinda do oriente, especialmente da Pérsia, que entendia o mal como realidade radical que se contrapunha ao bem. Dessa segunda tradição é exemplo a revolta de Lúcifer contra Deus (Is. 14) ou a insatisfação do grande Querubim (Ez. 28) que foi lançado nas trevas. Nas duas tradições, a vida humana se desenvolve nas escolhas que faz diante do mal.

Além da tradição bíblica e da forma como o tema foi tratado antes de Sócrates, o ocidente também examinou a escolha do mal a partir dos modelos éticos fruto da meditação filosófica. Esses modelos se desenvolveram desde a antiga Grécia, Aristóteles foi o construtor de um primeiro e sistemático modelo ético, modelo cristianizado por Santo Tomás, ao qual se contrapuseram as éticas modernas racionalista e empirista, a ética kantiana do imperativo da razão e a ética dos valores de Max Scheler. Todas reconhecem a autonomia do homem e sua possibilidade de escolher o mal, embora considerem o mal de maneira distinta.

A questão da escolha do mal nesses últimos modelos éticos (Kant e Scheler), além de não fugir da tradição de que é possível escolher o mal, adiciona o problema de entender as diferentes formas de querer o mal. Em síntese, pode-se dizer que se pode querer o mal simplesmente cedendo aos desejos e inclinações instintivas, rebaixando o homem ao nível dos animais. Nesse caso, evitar o mal significava kantianamente conter os desejos da besta fera. Se essa besta não for contida a responsabilidade afasta-se da liberdade e a pessoa age para obter o prazer do momento. Uma segunda forma de escolher o mal é se omitindo em situações difíceis, escolhendo o bem apenas quando isso não a prejudica ou não lhe pede grande esforço. Foi o que fez Pilatos no julgamento de Jesus. E há ainda uma terceira forma de querer o mal: é praticá-lo com gosto, desejar escolher o mal. Frankl relatou que nos campos de concentração havia aqueles que gostavam de fazer o mal. Frankl escreveu (Fundamentos antropológicos da psicoterapia. Rio de Janeiro: Zahar, 1978, p. 179): “nos campos de concentração os homens se diferenciavam. Os salafrários deixavam cair as máscaras. E os santos se manifestavam. A fome fazia vir a qualidade de cada um.” Isso é assim porque os homens podem escolher e há os que escolhem praticar o mal em suas diversas formas.


  


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