sexta-feira, 2 de agosto de 2024

A democracia e seus inimigos. José Mauricio de Carvalho

 


A análise de Bauman sobre a liberdade na obra O mal-estar da pós-modernidade foi feita no contexto político. Quando alguém, num sistema democrático ele afirmou, perde uma contenda pode aguardar uma próxima oportunidade e o vencedor sabe que logo poderá ser derrotado num outro pleito. Nesse contexto, nenhuma derrota ou vitória é definitiva (id., p. 246): “a experiência dos que se empenham no jogo chamado liberdade é tão incerta, contingente e inconclusiva como o destino.” Portanto, a democracia encontra-se na raiz da liberdade.

A democracia, ao permitir a alternância de visões de mundo, mostra que a verdade pode ser olhada de diferentes modos e isso parece fundamental, pois uma única leitura da verdade já provocou desastres sem fim.  Bauman lembrou que (id., p. 248): “a história está cheia de assassínios de massa cometidos em nome de uma única verdade.” E pior ainda quando essa verdade se mistura com assuntos religiosos porque, nesse caso, as atrocidades não parecem absurdas, pois são feitas em nome de Deus. No caso (ibidem): “não são então os humanos os perpetradores da crueldade que assumem a responsabilidade, temendo assim serem censurados por sua consciência.”

Quando se pensa na verdade como estando na posse de um grupo, um partido ou uma ideologia isso sugeri que seja razoável o monopólio do poder e o controle de todos os outros indivíduos pela força. Por isso, a defesa da democracia aparece, na leitura de Bauman, como o caminho natural para evitar a opressão e a obediência cega a um determinado líder.

O pior do momento que vivemos é que as forças que pretendem eliminar as liberdades, creio que a seta de Bauman se dirige para a extrema-direita ou para ditadores de plantão, é que há aqueles que temem a liberdade. Esses não se importam em cedê-la voluntariamente (id., p. 250): “como demonstrou a experiência de nosso tempo de totalitarismo para além da dúvida razoável, com uma demasiada frequência o desejo de tirar a liberdade se encontra com o desejo de concedê-la.”  Assim, há aqueles que usam sua liberdade para renunciar a ela e assim perdem a possibilidade de experimentar e buscar um caminho próprio em meio às inseguranças da vida. Ao contrário, renunciam a ele para não viver a ansiedade que acompanha essas escolhas ou a insegurança quanto aos resultados. Bauman destacou que é um caminho inadequado renunciar a liberdade porque ela (id., p. 251): “é nosso destino: uma sorte de que não se pode desejar o afastamento e que não se vai embora por mais intensamente que possamos desviar dela os nossos olhos.”

A questão atual da liberdade inclui, ele avalia, a contradição entre aqueles muito ricos que querem mais dela para fazer literalmente tudo o que desejam e os mais pobres que não dispõe de quase nenhuma autonomia. A questão da liberdade se coloca de tal ordem que ela não pode ser assegurada pelos indivíduos, tanto porque é circunstanciada como porque individualmente nenhum sujeito é capaz de garanti-la individualmente (id., p. 255): “a liberdade individual não pode efetivamente ser atingida por esforços apenas individualmente; que para alguns poderem assegurar e desfrutar disso, algo deve ser feito para assegurar a todos a possibilidade de seu desfrute.” E, nesse contexto, parece ao nosso autor, que a única coisa justificável é ser solidário com os excluídos, aqueles que ele em outras obras denomina de lixo humano.

Fica-nos uma questão: é possível a democracia conviver com aqueles que embora vivam nela almejam destruí-la logo que possível? É possível admitir totalitários de plantão como foram Mussolini e Hitler no século passado, deixando-os disputar tranquilamente os pleitos e depois questionar o sistema para destruí-lo? Creio que o sistema precisaria se precaver desses oportunistas que, como serpentes venenosas, encontram-se escondidos na democracia para a matarem logo que aparece a oportunidade.

Postagens mais vistas