sexta-feira, 5 de março de 2021

Becos da Irracionalidade. José Mauricio de Carvalho – Academia de Letras de São João del-Rei


Vivemos há algumas décadas um clima de irracionalidade que ficou mais visível nesse tempo de pandemia. Trato por irracionalidade não os atos involuntários que fazemos sem racionar, como respirar, andar e digerir, mas aqueles em que a reação impulsiva e irrefletida se dá diante de questões vitais e desafios morais.
É natural que, em momentos como esse, quando a vida muda as perguntas que costumava fazer, não exista resposta pronta. É que a vida não sendo racional espera que nós respondamos com a razão, com a ciência nos assuntos que podem ser solucionados pela razão experimental e com uma razão não experimental ou filosófica nos demais assuntos.
Embora a razão seja sempre uma alternativa, a recusa da racionalidade é estimulada por governos totalitários, grupos mesquinhos, por uma coisa abstrata chamada mercado, num momento de clima generalizado de medo como agora, ou por outros inimigos dela. Esses adversários da razão, ordinariamente se aliam a uma população mal formada, que age como massa. A massa é incapaz de pensar por si mesma, compra uma imagem falsa do mundo, da vida, da felicidade e assume um padrão bizarro de comportamento. E se há algo fundamental na Filosofia é que ela obriga a pensar o que está aí e o que devemos fazer diante disso que se nos apresenta. Como ela questiona governos totalitários, duvida do mercado quando quer dar o caminho da felicidade e dos grupos mesquinhos e egoístas, a Filosofia é, por seus inimigos, acusada de ser inútil tentativa de compreender o mundo. Os mais idiotas a consideram coisa de comunistas. Afinal, pensar a realidade não agrada o mercado, os totalitários, os espertos e os maus até que a vida muda as perguntas e essa gente fica sem respostas batendo cabeça. Por isso, hoje todos os adversários da Filosofia parecem baratas tontas sem saber o que fazer, o que eles diziam carece de consistência.
As investidas das forças irracionais contra a Filosofia é um dos temas de O homem e a filosofia (Porto Alegre, 3 ª edição, MKS, 2018, 343 p.). No capítulo 6, por exemplo, se mostra como os governos totalitários (nazismo, fascismo e comunismo) contribuíram para formar uma sociedade de técnicos que reage como massa informe aos desafios da vida. Comenta-se o que escreveu Hannah Arendt no livro Origens do totalitarismo descrevendo o comportamento político que “emergiu nas primeiras décadas do século XX. A filósofa avalia a destruição da vida pessoal e o problema do mal presentes na sociedade humana a partir das notícias que lhe chegavam do campo de concentração de Auschwitz. Sua primeira observação é de que se tratava de fenômeno ímpar na história humana, irredutível a uma única causa e inexplicável com conceitos da filosofia do seu tempo.” (p. 133) O extermínio em massa dos judeus era um tipo de crime não codificado e que foi realizado com a mentira de que eram eles os responsáveis pelos males do mundo e, ainda, a propaganda nazistas dizia que os alemães possuíam uma razão superior, capaz de decidir que vidas mereciam ser preservadas. Negros e outros povos inferiores seriam os próximos a serem eliminados.
Arendt examinou ainda o comportamento de Eichmann no livro A dignidade da política (1993). Ela relatou que, em seu julgamento, “o militar não apresentou uma personalidade doentia, nem convicção ideológica profundamente arraigada ou uma especial tendência para o mal.” (p. 136) Em outras palavras, não era um monstro ou uma aberração, pelo contrário era pessoa comum, bom pai e esposo, soldado obediente. O que se passou com ele? Simplesmente, atendendo a propaganda nazista, ele se “tornou um agente potencial do mal porque abdicou de sua consciência como guia moral para as escolhas, ele se tornou escravo de uma engrenagem inimiga da liberdade. O mal praticado por Eichmann tinha origem na sua incapacidade de pensar e agir segundo sua consciência.” (p. 137). Em outras palavras, o mal vinha de sua incapacidade para pensar racionalmente.  Num outro livro denominado Eichmann em Jerusalém, a filósofa aprofundou os problemas que incapacitam examinar racionalmente os problemas.
Nesses dias de pandemia quando se obriga a usar máscaras a motoristas que viajam só, quando não se observa o essencial do distanciamento social (que é se manter, no mínimo, a dois metros de distância uns dos outros, usar máscara e tomar outras medidas de higiene quando houver contato ou risco de aproximação com outras pessoas, e não, necessariamente, ficar em casa), quando o presidente receita, sem ser médico, um remédio não testado para uma doença nova; quando a imprensa espalha o terror, assume o papel de consciência moral da sociedade, goza na repetição do mal e deixa de lado sua tarefa legítima de informar; quando o cidadão não toma as medidas de higiene necessárias e põe em risco a própria vida e de seus vizinhos; quando alguns não entendem que a solidariedade no sofrimento é uma das formas que identifica nossa humanidade e não comunismo, vemos os sintomas da vitória da irracionalidade e o desastre que é uma sociedade que deixou de lado a filosofia e suas lições.



3 comentários:

  1. Vivemos o medo, incentivados ao pânico, logo seremos uma sociedade emocionalmente adoecida.

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  2. E tudo que estamos vivendo escancara o quanto faltou nos últimos anos se falar de ética e respeito.
    A maldade dos badalados ministros da saúde de que era uma doença de idosos, deu no que estamos vendo,
    Idosos em casa se cuidando,filhos e netos trazendo a doença para casa.

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