sexta-feira, 16 de setembro de 2022

A atual sociedade de massas, diálogo com Flusser. José Mauricio de Carvalho

 




Muitas páginas foram escritas sobre o filósofo theco-brasileiro Vilém Flusser, outras mais sobre os temas que abordou. Assim caminha a razão humana, reavaliando o que se fez e construindo pontes para o enfrentamento dos problemas que a vida oferece e renova aproveitando-se de elementos herdados do passado.

Podemos olhar a obra de Flusser de várias perspectivas, dividindo-a, por exemplo, pelo momento histórico de sua elaboração destacando os escritos da juventude vivida na República Tcheca, mencionando aqueles da vida adulta elaborados no Brasil e, finalmente, indicando os elaborados nos dias da maturidade quando retornou à Europa fixando residência na França. Podemos também estudar o autor a partir de um conceito nuclear, como fez Rodrigo Duarte ao fazer a hermenêutica filosófica de Flusser girar entorno ao conceito de Pós-história ou então destacar a importância da dúvida na meditação filosófica como fez Gustavo Bernardo. Está bem dos dois modos, podemos dialogar com o autor por essas formas.  Prefiro, no entanto, dividir seus textos em duas partes. Inicialmente inserindo os escritos que explicam a crise de cultura que vivemos com suas causas e depois aqueles outros que descrevem a sociedade atual e a proposta de superação da crise. A primeira parte contempla o diagnóstico dos tempos de crise que vivemos e aí estão os estudos sobre a pós-história e a segunda na descrição da sociedade atual onde estão os textos sobre a sociedade telemática e seu destino.

A divisão aqui sugerida é didática porque a noção de pós-história culmina na superação da escrita em linha, da consciência histórica e sua substituição pelas imagens técnicas e os textos que descrevem a sociedade telemática inicia justo quando se processa essa substituição. Vemos surgir o mundo dos aparelhos e funcionários que utilizam as imagens técnicas, aquelas feitas pelos aparelhos (máquinas fotográficas, filmes, gravações, etc.) e usam mais recentemente as máquinas e o computador. Na prática é difícil dizer até esse texto estamos na primeira parte e agora passamos a segunda. Essa divisão tem ainda a dificuldade de incluir toda a preparação para a construção do conceito de pós-história a partir dos textos sobre a história dos tempos vividos no Brasil, como detalha Rodrigo Duarte.

A divisão proposta tem caráter hermenêutico. A noção de pós-história reconstrói, de forma criativa, a compreensão flusseriana de que o historicismo do século XIX estava superado e isso é interessante, mas não era novidade. Ortega y Gasset, por exemplo, explicara porque as ideias de Hegel e Marx já não serviam para tratar o mundo que ele vivia, embora tivessem sido essenciais para entender o século XIX. Flusser segue Ortega e os outros fenomenólogos como Edmund Husserl que recusaram um historicismo que progride em linha em direção a um futuro grandioso e inexorável e recusaram as ideias econômicas de Marx e Engels. Essa constatação é importante porque qualquer intelectual de nossos dias sabe que defender o humanismo ou uma sociedade mais fraterna não significa retornar ao marxismo ou ao socialismo marxista muito menos repetir historicismo do passado como o de Giambattista Vico, Joaquim de Fiori ou outro historicista como Johann Gottlieb Fichte e Friedrich Wilhelm Joseph Schelling. No entanto, a recusa dos historicismos passados não representa para os fenomenólogos uma recusa da consciência histórica ou possibilidade de pensar a história em fases como fez Karl Jaspers, pois sem a consciência histórica não há identidade possível às pessoas ou povos. Esse é um equívoco daqueles que desprezam os estudos históricos. Além do mais, perde-se um recurso extraordinário de recuperar no passado elementos para construir pontes para o futuro. Nisso está o problema dessa parte de suas ideias.

E o que faz Flusser recusar o pensamento histórico? Foi a sua experiência com os nazistas e a perseguição aos judeus durante a Segunda Guerra. Flusser avaliou que os instrumentos de destruição utilizados pelos nazistas estavam implícitos na objetivação da pessoa inserida no projeto historicista judaico-cristão que forma a espinha dorsal do ocidente. E então recusou o instrumento de destruição de sua família, voltando-se contra o ocidente e sua alma judaico-cristã, sua fé transcendente e os valores culturais. Ao recusar o historicismo da cultura ocidental que culminava na transformação do homem em coisa ou funcionário. Portanto, o homem massa ou funcionário não era um desvio de rota, mas algo da essência da cultura ocidental. Recusando a fé religiosa, a espiritualidade humana mesmo no sentido fenomenológico, Flusser construiu uma antropologia materialista de inspiração psicanalítica, seguindo outro judeu Sigmund Freud. O criador da psicanálise, à parte de sua enorme contribuição para entender a alma (psique) humana, de forma diferente de Flusser fez o mesmo que ele, atribuiu à fé e cultura judaica a razão da perseguição que aquele povo sofria. Flusser radicalizou a recusa do judaísmo e cristianismo recusando a cultura ocidental e desejando matá-la para colocar outra coisa no lugar. Nesse sentido a sociedade que via nascendo, a sociedade telemática ou de massas era o ponto de chegada do ocidente. Auschwitz fora um momento desse processo.

Quanto à descrição da sociedade atual, caracterizada pela sociedade telemática, podemos dizer que significa uma atualização bem elaborada da sociedade de massas de Ortega y Gasset. Flusser argutamente observou os aspectos de uma sociedade de massas que vive não mais num capitalismo industrial. Também que o homem massa não era apenas infantil, birrento e bárbaro como dizia Ortega, mas dominado pela linguagem da tecnologia, abandonou a consciência crítica, histórica, oportunizando a emergência de governos ditatoriais, figuras toscas e desumanas como o nazista Adolf Hitler e suas novas versões contemporâneas. Visão genial de por onde andamos nesses dias de reavivamento da extrema-direita e seu desprezo pelo humanismo, pelos estudos históricos e pela racionalidade, inclusive a científica. Para Flusser, existe, nessa sociedade telemática, uns poucos responsáveis pela programação dos aparelhos no centro da vida humana e seriam eles os responsáveis por vencer a mecanização do mundo, oportunizando o surgimento de uma sociedade de homens que se divertem entre as tarefas que executam. Esse homem lúdico que vive se divertindo é o seu modelo de homem que enxerga para essa sociedade em crise. No entanto, nem a vida é brincadeira, embora brincar seja parte da vida, nem nosso futuro pode depender de programadores que cortaram os laços com a consciência crítica, o humanismo e a consciência histórica. Isso porque, se a sociedade telemática de Flusser realmente se implantar, nela não haverá espaço para contatos que desfaçam a lógica do controle realizado pelos aparelhos.

Essa forma de examinar o pensamento de Flusser permite notar suas boas contribuições, tanto na superação do historicismo do século XIX, quanto na compreensão da crise vinda da atual sociedade de massas guiada por aparelhos, com funcionários vivendo entre aplicativos e outras criações da informática. Porém esse método mostra os limites do pensamento de Flusser perdido na recusa do humanismo, da consciência histórica, dos valores judaico-cristãos, da Filosofia e da fé em Deus, qualquer que seja sua forma de compreensão. Flusser perdeu-se ao se afastar de sua raiz ocidental e judaica.

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