No livro Retropia (2017) Bauman examinou uma
mudança na compreensão do tempo como destino da esperança humana. A modernidade
sólida, como se indicou no item anterior, apontava o futuro como destino
natural da esperança e nele depositava a confiança de alcançar melhores dias. A
tradição filosófica desde Agostinho alimentou um pouco essa convicção de um
futuro melhor.
No livro Mauá e a ética saint-simoniana
mostramos alguns momentos fundamentais da compreensão triádica da história que
laicizou a esperança judaico-cristã que propusera a crença em um Reino de paz
no futuro. E mostramos a contribuição do Joaquim de Fiori e Giambattista Vico,
esse último já na modernidade para a consolidação dessa disposição numa
linguagem mais filosófica. Vico entendia que (CARVALHO, 1997, p. 181): “a
história compunha-se de uma sucessão dos ciclos cujo motor seria a providência
divina.” A compreensão triádica presente em Fiori e sua esperança no futuro foi
laicizada por Saint-Simon e Georg Hegel, entre outros representantes do
pensamento moderno. Na Introdução à história da filosofia (id., p. 184):
“Hegel tematizou o progresso do Espírito e o seu movimento. Retomou o
referencial de Vico e enxergou na história dos povos um movimento cíclico.” A
esquerda e direita hegeliana continuaram a usar o esquema triádico e ele foi
também acolhido por Augusto Comte e outros positivistas. Todos confiando num
futuro melhor que o passado. No positivismo a ideia de história foi associada a
ordem e progresso inexorável da história, ou seja, uma vida melhor amanhã que
hoje como sendo o destino do gênero humano.
Um exemplo da mentalidade triádica, no século
passado, encontra-se no livro Palavra de Homem. Ainda na década de
setenta, o autor daquela obra, o filósofo francês Roger Garaudy definiu o
passado como (1975, p. 130): “um campo de recordações e de nostalgia dos fatos
(isto é, de coisas feitas, de atos cristalizados em objetos e instituições)”. O
passado não era o lugar da esperança, mas da saudade pois a alegria habitava as
terras do devir, como ele explicou filósofo (ibidem): “o futuro é um
feixe de projetos, de possíveis, de esperanças, de liberdade, pois temos ainda
a escolher entre possíveis e criar outros.” E o texto seguiu cheio de confiança
num futuro melhor, desde que construído com responsabilidade, pois não se podia
mais admitir um devir de sonhos, como no século XIX, à parte do esforço de cada
pessoa. Essa consciência crítica tornou-se própria de um tempo, em (id., p.
131): “que os fatos, em história, são o que foi feito, e feito pelos homens.”
Na síntese do sociólogo (BAUMAN, 2017c, p. 62): “o
futuro é um reino de liberdade (tudo pode acontecer por lá), à diferença do
passado, o reino do imutável e da inevitabilidade inalterável), o futuro em
princípio é maleável.”
O livro Retropia identificou, na consciência
contemporânea, uma mudança do lugar da esperança. Nossos dias modificaram a
perspectiva, ela não mais estaria num futuro a ser construído, como na crença
de Agostinho e Fiori e nas utopias positivista e marxista, mas num passado
fantasiado (id., p. 8): “o século XX começou com uma utopia futurista e acabou
com nostalgia.” E o mais complicado dessa visão é que se trata de um passado
fantasiado. A mistificação do passado substituiu a esperança do futuro. De todo
modo ele foi tornado maleável para que fosse possível administrá-lo. O
sociólogo explicou (id., p. 10): “hoje estão emergindo retropias: visões
instaladas num passado perdido/roubado, abandonado, mas que não morreu, em vez
de se ligarem a um futuro ainda todavia por nascer.” E como devemos entender o
conceito? Bauman o apresentou como (id., 13): “a negação da negação da utopia.
É um derivativo que compartilha com o legado de Thomas More a fixidez num topos
territorialmente soberano.”
O lugar da esperança que migrou do futuro para o
passado precisa, contudo, de um mínimo de estabilidade. Não dá para conviver
com algo (id., p. 64): “teimosamente ausente, o chão firme sob os pés – chacoalhados
como são hoje por ondas cruzadas de mensagens que se fraudam e se cancelam umas
às outras.” E foi por isso, em busca de um novo ponto de segurança que ocorreu
(id., 14): “a reabilitação do modelo tribal de comunidade; o retorno ao
conceito de um eu primordial/prístino predeterminado por fatores não culturais
e imunes à cultura.”
Esse lugar de esperança e paz coloca em questão a
proposta do livro Leviatã de Thomas Hobbes, uma vez que aquele filósofo
confiava poder controlar a violência com a força do Estado. No entanto, ao
contrário, ela permaneceu viva, sempre pronta a explodir. Assim, o verniz
civilizatório e as forças do Estado apenas foi cobrindo aqueles comportamentos
mais animalescos, mas sem tocar na brutalidade original, que permaneceu
intacta. Isso apesar dos instrumentos do Estado para assegurar a construção de
uma civilização pacífica. Pois bem, é essa capacidade do Estado de cumprir o
papel que Hobbes lhe designara que hoje está em questão. O enfraquecimento do
Estado, já tratado em outros capítulos, aumenta a insegurança das pessoas. Em
outras palavras (id., p. 25): “o Leviatã se mostra incapaz de expressar
a fronteira que ele próprio estabeleceu entre violência legítima e ilegítima de
maneira realmente confiável. Além do mais, um Estado cujas fronteiras são
facilmente violáveis é uma contradição completa e isso vai se tornando comum.”
Contribuindo para ampliar o clima de insegurança,
aumenta no mundo o comércio de armas leves, pouco controladas pelos Estados,
apenas preocupados com as armas de destruição em massa. E assim (id., p. 51):
“graças a globalização, à separação e ao divórcio dela decorrentes entre poder
e política, os Estados hoje estão se tornando não muito mais que vizinhanças
amplas. Elas estão confinadas no interior de fronteiras apenas vagamente
demarcadas, porosas e fortificadas com ineficácia.” E é assim que no interior
dos Estados surgem tribos, que se identificam e estabelecem novas regras sobre
quem faz parte e quem não faz daquele grupo. Até porque uma vizinhança cheia de
estrangeiros aumenta a sensação de insegurança e provocou o recrudescimento do
nacionalismo. Bauman resumiu essa nova realidade afirmando que o que o tipifica
(id., p. 54): “é o deslocamento de um anseio de independência em relação a uma
sociedade constituída por indivíduos.”
Quando ao mal e violência praticado contra os
estrangeiros da tribo isso tem em vista oferecer prazer num mundo ávido por
oportunidades de gozo. Pois poder fazer o mal (id., p. 67): “nos dá prazer
liberar nosso poder sobre outra pessoa e experimentar a agradável sensação de
superioridade.” E assim, o ódio ao estranho a nossa tribo, tornou-se capital
político que passou a ser explorado por governo populistas.
Dessa forma, a esperança no devir migrou para o
passado e alimentou um discurso conservador que guarda muito de anacrônico,
além de permitir a emergência do nacionalismo quando ele parecia em declínio
desde a queda do nazismo.
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