domingo, 2 de setembro de 2018

José Mauricio de Carvalho – Academia de Letras de São João del-Rei

O homem e sua referência ética
O reconhecimento de que o homem é sujeito de valores decorre da nossa necessidade de escolher. Viver é optar entre alternativas, o que já permitiu descrever a vida como um que fazer. Essa capacidade de escolher nos coloca como sujeitos livres, ainda que limitados e condicionados, pois uma escolha é sempre feita numa situação determinada. A isso se soma a consequência do escolhido, responsabilidade conosco e com as pessoas que estão a nossa volta, pois se as escolhas nos afetam, também atingem aqueles que são objetos de nossa ação.
Essa realidade humana foi apontada por diversos pensadores como um diferencial do homem em relação aos demais entes, pois quando se escolhe o sujeito pode, com todas as limitações que daí decorram, alterar o futuro, modificá-lo de forma consciente. Nisso uma marca sua, pois muitas vezes um animal também faz coisas que mudam o futuro, mas não se pode dizer que o faça com a consciência de que possa escolher melhor. De fato, as escolhas humanas se articulam numa bipolaridade entre o melhor e o pior, entre o belo e o menos belo, o útil e o não útil, o justo e o não justo. Em contrapartida, as mudanças que ocorrem na natureza não revelam essa intencionalidade, mas regras mais ou menos identificáveis que o homem busca conhecer. Sua capacidade de conhecer as leis que regem a natureza somada a possibilidade de escolher entre o melhor e o pior são características humanas, reconheceu o filósofo alemão Immanuel Kant na conclusão da Crítica da razão prática (Oeuvres Philosophiques, Paris: Gallimard, 1985, v. II, p. 801/2): “duas coisas enchem o espírito de uma admiração e de uma veneração sempre novas e sempre crescentes, na medida da frequência e da perseverança com a qual a reflexão a elas se apega: o céu estrelado cima de mim e a lei moral dentro de mim”.
Uma das mais impressionantes lições dessa realidade moral do homem foi descrita pelo médico psiquiatra Viktor Frankl num de seus livros relatou suas experiências nos campos de concentração nazista durante a Segunda Grande Guerra. Ali Frankl constatou que entre as maiores privações e torturas, depois de tudo ter sido tirado do homem, havia aqueles que não se deixavam animalizar, partilhando o último pedaço de pão, oferecendo uma palavra de amizade e apoio quando nada mais havia a partilhar, arriscando-se para minimizar o sofrimento do companheiro. Ao constatar esse comportamento em muitas centenas de pessoas convenceu-se de que é possível ser melhor ou pior nas mais difíceis condições imagináveis. E entre as escolhas feitas nenhuma parece revelar melhor essa realidade humana do que a justiça.
Ele descreveu um episódio paradigmático sobre esse assunto. Numa das vezes em que teve que formar pelotão, estando num terreno muito acidentado, não tinha noção do que se passava atrás dele e então um guarda chegou próximo e lhe desferiu dois violentos golpes na cabeça porque ele ficou um pouco fora do alinhamento. Sobre isso ele confessou (Em busca de sentido. Petrópolis, Vozes, 2017. p. 39): “a dor física causada por golpes não é tão importante (...) a dor psicológica, a revolta pela injustiça ante a falta de qualquer razão é o que mais dói numa hora dessas”. E ele relata como, mesmo homens brutais, que haviam perdido a sensibilidade para com a dor do outro e assistiam sem reação ao castigo de um prisioneiro, acabavam por se tocar diante de gritante injustiça. Foi o que ocorreu quando o chefe do serviço o tirou de uma atividade e o colocou sobre outro comando, quando percebeu que o líder imediato da atividade lhe havia agredido de forma injusta. Frankl relatou esse episódio relativamente sem importância para dizer que (id., p. 43): “homens que haviam perdido a sensibilidade emocional ainda chegam a ser tomado de revolta, não por brutalidade ou qualquer dor física, mas pelo escárnio”.
Os relatos de Frankl demonstram que quando já pouca humanidade resta no indivíduo, ainda assim ele reage a uma situação de injustiça flagrante, revelando algo de si mesmo nessa escolha.

3 comentários:

  1. Todo ser humano tem em si o que considera valores, muitas vezes totalmente distorcidos pelo meio que vive.
    Mas a humanidade numa sociedade sempre da ao sujeito oportunidades de lapidar-se, melhorar suas relações e ser ético.
    Se analisarmos o nosso hoje pelas notícias diárias, diríamos que passamos por uma crise e que falta humanidade.
    Mas se observarmos o nosso cotidiano veremos que a nossa volta muitas pessoas se doam e praticam os ensinamentos de CRISTO, dividindo muitas vezes o pouco com aquele que nada tem.
    Somos humanos, o sofrimento nos machuca, mas nos leva a REFLEXÃO, nada dura para sempre, nem o BEM, nem o MAL.

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    1. Muito interessante.
      Isto é ter esperança na humanidade, faz bem.

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  2. Muito reflexivo.
    Estamos em transformação.

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