sexta-feira, 3 de outubro de 2025

A desumanização da sociedade, cem anos depois da obra orteguiana .José Mauricio de Carvalho




O fenômeno que Ortega y Gasset observou no campo da estética e descreveu há um século em La deshumanización del arte parece aos olhos de hoje parte de algo mais amplo e complexo. Não significa que as análises sobre suas concepções estéticas feitas até aqui sejam inadequadas. A questão é outra. Cem anos depois da publicação daquele livro podemos dizer que o que ele vislumbrou era mais que a desumanização da arte, mas uma espécie de desumanização da vida social ou da cultura ocidental. O pensamento moderno e sua confiança na razão levou a impasses e dificuldades, o que se tentou arrumar mencionando aspectos não racionais na vida humana com o instrumental psicanalítico ou com a ênfase na razão vital, como fizeram Ortega e seus discípulos. Porém vivemos hoje uma circunstância mais complexa.
A herança moderna e mesmo sua atualização no século passado com a tríade constituída pelo neokantismo e as filosofias de Emmanuel Lévinas e Hannah Arendt indicava que a escolha moral significava, acima de outras coisas, diferenciar o que é bom do que não é e reconhecer a responsabilidade que temos na prática do bem e na recusa do mal. Isso significa não ser indiferente com os outros e nem faltar aos compromissos com a humanidade (pauta ambiental, direitos humanos, respeito à pessoa humana). E há ainda um problema adicional que é transcender a linha entre os que merecem respeito e os outros que não, enfim, passar a fronteira entre o nós e o eles, o que limita a escolha moral. Quando se perde a referência moral as relações humanas abrem caminho para a desumanização, com a exclusão de seres humanos, com relações líquidas como as descritas por Zygmunt Bauman, com o descaso com valores que foram reconhecidos e justificados durante séculos pelo mundo ocidental. Portanto, o livro orteguiano vislumbrava a aurora de mudanças muito mais complexas do que aquelas que ele descreveu. E essas mudanças pedem hoje dos intelectuais uma resposta porque seguir nessa direção, na desumanização da vida, não nos vai levar a um bom destino. O que já estamos vendo acontecer?
O resultado das mudanças operadas na sociedade pelo fenômeno da globalização e pelas escolhas das gerações atuais, conceito que Bauman tomou de Ortega y Gasset como mencionou em A arte da vida (p. 78), não conseguiram conversar com a transmutações que estão ocorrendo na sociedade. As últimas gerações já não percebem bem seu lugar no mundo e nem sabem conversar com o melhor do passado. O resultado foi o surgimento de um homem-massa, um tipo médio cego por interesses imediatos, egoísta ao extremo, ansioso, hedonista, materialista ou limitado por uma visão empobrecida do sagrado, um homem que se distanciou dos valores ocidentais, recusando a racionalidade e cultivando a intolerância, antidemocrata muitas vezes e ignorante da tradição humanista que formou o esqueleto da cultura ocidental.
Adelmo José da Silva
Belo texto, Mauricio, parabéns.
Bruno Cunha
É muito interessante notar como que não apenas Ortega ou Bauman, mas também outros como Horkheimer, Heidegger etc, perceberam a crise da razão e a perda do fundamento objetivo como fonte e origem da crise do século XX. E como isso segue basicamente a mesma direção, apesar da grande diferença dos contextos, no século XXI.

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