sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Identidade em tempos líquidos. José Mauricio de Carvalho

 



Tivemos oportunidade de indicar que um aspecto da crise de cultura que estamos passando decorre da insuficiência da subjetividade cartesiana para representar a realidade humana em meio às mudanças recentes na sociedade. E esse é um assunto fundamental pois (BAUMAN, 2005 b, p. 74): “a essência da identidade responde à pergunta quem sou eu e, mais importante ainda a permanente credibilidade da resposta que lhe possa ser dada.” Sabemos que muitas descobertas relativamente recentes afetaram a percepção inicial de René Descartes para quem, a resposta à indagação quem sou eu, foi que sou uma coisa que pensa. E, devido a essa conclusão ou intuição, a subjetividade tornou-se a base de nossa existência no mundo, vida pensada como espaço de liberdade e finalidade do espírito em meio a um mundo natural determinístico. E a subjetividade se definia por construir juízos (DESCARTES, 1987, p. 54): “a respeito de coisas que lhe são clara e distintamente representadas pelo entendimento.” E de todas as proposições evidentes a mais verdadeira e basilar era a concebida na quarta parte do Discurso do Método (DESCARTES, 1987/1988, p. 47): “eu penso, logo existo.” Toda a argumentação cartesiana se tornou insuficiente com as descobertas da psicanálise e especialmente pelos contributos fenomenológicos a respeito do papel fundamental das circunstâncias entorno ao eu, como explicou Ortega y Gasset nas suas Meditaciones del Quijote. 

O assunto tornou-se relevante porque mesmo os ajustes contemporâneos da psicanálise e fenomenologia passaram a ser insuficientes para tratar a subjetividade devido ao esfacelamento de instituições que contribuíam para oferecer identidade ao indivíduo ou lhe ofertavam segurança nesse entendimento, de tal modo que o pertencimento a qualquer delas (família, clubes, classe, etc.) hoje em dia, não garante muita coisa. Deixados à própria sorte essas pessoas sentem-se abandonadas e incapazes de encontrar um caminho razoável por conta própria para considerar seu modo de ser no mundo. Uma situação incômoda porque (BAUMAN, 2005b, p. 53): “feridos pela experiência do abandono, homens e mulheres desta nossa época suspeitam ser peões no jogo de alguém, desprotegidos dos movimentos feitos pelos grandes jogadores.

O problema da subjetividade foi aproximado da identidade num livro com esse nome (id., p. 50): “houve um tempo em que a identidade humana de uma pessoa era determinada fundamentalmente pelo papel produtivo desempenhado na divisão social de trabalho, quando o Estado garantia (...) a solidez e durabilidade desse papel.” E havia outras referências para ajudar nessa tarefa, como o sociólogo comentou, elas ajudavam cada pessoa a se situar e descobrir um caminho para viver quando (id., p. 37): “lugares em que o sentimento de pertencimento era tradicionalmente investido (trabalho, família, vizinhança) estão indisponíveis e dignos de confiança.” E isso tornou-se um problema (id., p. 30): “quando a identidade perdeu as âncoras sociais que a faziam parecer natural, predeterminada e inegociável, a identificação se tornou cada vez mais importante para o indivíduo. Assim, em nossos dias (id., p. 17): “pertencimento e identidade não têm a solidez de uma rocha, não são garantidos para toda a vida, são bastante negociáveis e revogáveis.” Logo, os caminhos assumidos no decorrer da vida não asseguram uma direção, nem um lugar, nem segurança, pois podem ser revertidos a qualquer momento.

A identidade como objeto de estudo ganhou destaque nos últimos anos, antes não fora tema da ciência sociológica. E um dos motivos disso é que ela deixou de ser pensada nos moldes da modernidade e se tornou um processo de construção sem final previsível e permanente. O nascer numa classe, por exemplo, não assegura o contínuo pertencimento a ela. O atual processo de construção da identidade tem resultados imprevisíveis (id., p. 54): “a imagem que deverá aparecer no fim do seu trabalho não é dada antecipadamente, de modo que você não pode ter certeza de ter todas as peças necessárias para montá-la.” E há um outro aspecto a se destacar no estudo do sociólogo, a construção da identidade equivale a avatarização. E, por isso, é fundamental entender o que é propriamente um avatar.

No sentido utilizado por Bauman, um avatar, é uma representação digital ou iconográfica de um usuário, como ocorre nos jogos ou nas redes sociais. Esse assunto também foi considerado em O elogio da literatura. Naquele livro o autor tratou de um personagem, uma imagem ou uma representação qualquer da vida social como um jogo que pode ser reiniciado a cada momento, sem compromisso com o que foi feito no anterior. Trata-se de um processo vital que pode ser recomeçado a qualquer tempo, zerando o que se passou anteriormente. Não é como a encarnação feita de uma vez para sempre numa família, comunidade e tempo (BAUMAN, 2020, p. 106): “mas um princípio capaz de acontecer diariamente, hora a hora; esse de ocorrência é, ademais, eminentemente adequado à multitarefa.” Essa seria a característica da identidade nesses tempos líquidos.

A avatarização, ao contrário da noção de identidade moderna, é um outro modo de viver as escolhas e engajamentos numa comunidade, pois sempre é possível voltar ao ponto de partida e reiniciar a história singular, sem que os aspectos anteriores sejam considerados. Ou ainda e creio que é possível pensar em algo como no filme Avatar (de 2009) em que se deixa o que somos entre parêntesis e se emprega identidades substitutas para viver. De tal modo, que em ambos os casos (id., p. 107): “elimina-se a gradual maldição da finalidade e do caráter consequencial das escolhas, decisões, engajamentos e empreendimentos; acabando com escolhas fatídicas e mantendo a trajetória da pessoa a uma distância segura dos pontos de não retorno.”

Feito isso, eliminam-se os riscos das decisões sérias e definitivas, porque as opções podem ser novamente feitas num novo momento e outra vez vividas com a reedição do avatar. Daí (id., p. 109): “uma infinidade de escolhas em oferta, a insaciabilidade do desejo por novos começos e o sonho de nascer de novo hoje se combinem para constituir o maior pêndulo da economia consumista.” Dito de outro modo, deixamos a identidade moderna e sua estrutura sólida para viver como um avatar, um outro de nós que não se fixa a nada. E (id., p. 109): “avatares satisfazem nossos desejos fantasiosos de nos tornarmos outra pessoa em outro lugar.” A pessoa assume outra nacionalidade, gênero, raça ou religião e passa se reconhecer dessa forma. A noção sociológica da identidade fornece elementos para mudar a forma como a pessoa se reconhece, vive seus papeis, valores, crenças e memórias. A identidade social, que é o cerne da exposição de Bauman, modifica a identidade psicológica e mesmo a filosófica.

Uma outra forma alegórica de representar essa maneira fluída de viver a identidade e transitar de uma à outra é o karaokê, que é um jogo em que a pessoa assume personalidades diferentes à medida que canta as diversas músicas tocadas num aparelho. Trata-se de cantar uma versão da canção de alguém (id., p. 110): “canção de quem? Não importa ... o importante é cantar.” O que conta é a performance de cada novo momento, sem que seja preciso pensar no movimento anterior. Nada será feito de forma profunda ou com sentido duradouro.

Uma forma específica de identidade é a nacional, descrita por Bauman no seu livro de 2005b. Trata-se de uma construção eminentemente moderna, associada à criação do Estado Nacional e frequentemente pouco considerada pelas pessoas de uma determinada região que nunca se colocaram o problema de pertencimento a um grupo bem mais amplo do que aquele próximo de sua experiência. Antes esse assunto era pouco relevante, pois (BAUMAN, 2005b, p. 25): “sua forma de estar no mundo eliminava a questão da identidade (nacional).” E a identidade nacional tinha uma característica específica porque ao contrário de outras exigia exclusividade. E mesmo outras identidades sociais possíveis dependiam da confirmação ou endosso das autoridades do Estado. Nesses termos (id., p. 28): “ser indivíduo de um Estado era a única característica confirmada pelas autoridades nas carteiras de identidade e nos passaportes.”

Em tempos líquidos, onde os poderes do Estado encontram-se diminuídos, a procura pela identidade nacional (id., p. 35): “vem do desejo de segurança, ele próprio um sentimento ambíguo.” Contudo, num ambiente internacional instável a busca de identidade é uma tentativa de enfrentar a ansiedade de se sentir sem vínculos. E, nesse mundo em transformação, há de se mencionar que há identidades nacionais melhores e outras nem tão boas. Essas últimas, das quais não é fácil se livrar (id., p. 44): “esteriotipam, humilham, desumanizam, estigmatizam.” E, além dessas, há o que o sociólogo denominou identidades de subclasse, isto é, aquelas que tiram o valor da individualidade como: sem-teto, mendigo, mãe solteira, viciado ou ex-viciado em drogas que o sistema procura manter sob vigilância e controle.

2 comentários:

  1. Muito interessante, as identidades.

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  2. Para o sistema sem teto, viciado, mendigos e outros, são os dependentes do estado, portanto devedores, pagam com o voto, o benefício que recebem.

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