sexta-feira, 18 de abril de 2014

Pela Filosofia. José Maurício de Carvalho



Ao inserir na prova de Filosofia do ensino médio uma questão sobre música da cantora Vaneska Popozuda, o Prof. Antônio Kubitschek, da cidade de Brasília,  levou a Filosofia para passear no jardim do ridículo. E diga-se logo, este não é lugar adequado para esta velha senhora de 2600 anos, ocupada com as questões fundamentais da existência do homem e do mundo. E por que não é um bom lugar para esta velha senhora? Porque em nosso tempo muitos não a compreendem, outros fingem respeitá-la, embora a desprezem. Há, finalmente, políticos oportunistas que querem vê-la fora das escolas pelos riscos que representa ensinando pensar de forma crítica os problemas da vida pessoal e da sociedade. Estes políticos desejam eliminar a Filosofia da Escola para evitar os questionamentos dos cidadãos e indiretamente poupar tostões com os quais se remunera mal os professores de Filosofia. Argumentam haver finalidade mais nobre para o dinheiro público. A mídia adorou divulgar a questão ridícula.
E quero desde logo esclarecer que não se critica aqui o uso de letras de música para provocar reflexão. Isto pode ser feito. Nem se trata de excluir de pronto o conteúdo da questão, pois sabemos que se pode falar de um simples copo d' água e isto ser Filosofia. Foi o modo de falar. Insisto, não é o tratar das coisas comuns da vida que afasta a Filosofia, pois sempre é possível retirar das experiências quotidianas um sentido profundo, buscar no  rotineiro as origens da certeza universal ou caminhar na autoconsciência do ser. É sempre possível perguntar-se se não respeitar a fila ou empurrar alguém ao entrar na condução encontra justificação universal. Porém, o fenomênico e o banal na reflexão filosófica hão de ser interrogados para se abrirem ao  amplo e fundamental. Refletir sobre o simples não significa que qualquer coisa é válida como Filosofia e isto a mídia não ajudará a esclarecer após a lamentável divulgação da prova. A opinião pública ficará com o que ouviu da questão infeliz.
A Filosofia foi levada ao jardim do ridículo também porque o Professor disse pretender a polêmica. Conseguiu a polêmica, mas promoveu reflexão filosófica? Ajudou a popularização ou a compreensão da Filosofia? Não acredito. Pode parecer que o propósito da Filosofia seja criar controvérsia, iniciar debate, promover a discussão, mas não é. O debate filosófico tem sentido como instrumento, quando se realiza em torno a questão específica, quando todos os debatedores estão comprometidos com o propósito de pavimentarem juntos o caminho até a verdade.  Dito de outro modo, embora a reflexão filosófica seja sempre individual ela precisa considerar o argumento de outras reflexões, pois ninguém na absoluta solidão de sua consciência encontra a certeza do fundamento. Não faz sentido a polêmica pela polêmica, mas faz sentido o diálogo que busca a verdade e esclarece os problemas.
A Filosofia foi levada ao ridículo porque apontar Valeska Popozuda como grande pensadora contemporânea sugeriu que a tradição filosófica é uma banalidade. Um lugar onde se coloca qualquer um. Como a cantora se apresenta ao público? O que a diferencia das outras Valeskas (e não Valeskas)? Qual é sua singularidade? O fato de ser Popozuda, isto é, segundo o Aurélio, o possuir grandes nádegas ou popa. E tão grande ela tem que não é só uma popa de respeito, mas é Popozuda. É assim que ela se identifica, é o que a diferencia das outras mulheres e, por extensão, de todo o restante da humanidade. E nada do que ela tenha escrito parece significativo no esforço de aprofundar a consciência do homem durante mais de dois milênios e meio. A tradição filosófica está bem demarcada no espaço da cultura pelo propósito de penetrar no fundamento do mundo e da vida. A tradição filosófica é movimento intelectual em torno as suas grandes obras e ser grande aqui não é simples. É preciso possuir grande reflexão.

Embora a Filosofia comporte muitas definições e interpretações, ela é reflexão pela qual o homem se pergunta pelo que existe e pela forma como se insere nisto que ele chama mundo ou realidade. É atividade séria, mas pode ser leve e didaticamente ensinada.

sexta-feira, 11 de abril de 2014

QUASE UM SÉCULO DE CULTURA. Selvino Antonio Malfatti




Hoje Reflexão homenageia ANTONIO PAIM, o intelectual brasileiro que completou 87 anos.
Inicialmente projetado para ser o guru do socialismo-comunismo no Brasil – inclusive com formação acadêmica em Moscou – quando percebeu o dogmatismo dessas ideologias, converteu-se à liberal-democracia. Devido à perseguição movida pela KGB russa teve que abandonar aquele país deixando por lá mulher e filha. 
No Brasil passa a lecionar em universidades fundando cursos de pós-graduação. Como resultado conseguiu formar escola e ter seguidores. Estes poderiam ser divididos em três categorias: os de primeira geração como Ricardo Vélez Rodriguez, Leonardo Prota, Anna Moog Rodriguez e outros. Os de segunda geração, como José Maurício de Carvalho, Tiago Lara, Selvino Malfatti e os de terceira geração que receberam formação de discípulos de Paim.
Nada melhor ouvirmos seu discípulo, um dos mais completos, Ricardo Vélez Rodriguez:

O ANIVERSÁRIO DO MESTRE ANTÔNIO PAIM




No passado 7 de Abril, um grupo de familiares, amigos e discípulos de Antônio Paim,  comemoramos em São Paulo os 87 anos do mestre. O evento aconteceu na Tasca do Zé e da Maria, em Pinheiros. A filha Augusta (que mora em S. Paulo) e a amiga Rosa Mendonça de Brito (residente em Manaus), planejaram tudo. Foi uma festa surpresa para o querido mestre. As organizadoras teriam gostado que mais amigos e discípulos do Antônio Paim estivessem presentes. Mas com o corre-corre foi difícil entrar em contato com mais pessoas. 

Estiveram presentes: Maria e Arsênio Corrêa (S. Paulo), Leonardo Prota (Londrina), Anna Maria Moog (Petrópolis), Ricardo Vélez Rodríguez (Londrina), Rosa Mendonça de Brito (Manaus), Augusta Fonseca Paim (S. Paulo) e Antônio Roberto Batista (S. Paulo).

Antônio Paim é um desses educadores que conseguem manter nexos de amizade com as várias gerações de discípulos que passaram pelas suas aulas. Coloco, a seguir, os depoimentos de duas discípulas do mestre: Anna Maria Moog e Rosa Mendonça de Brito. 

Eis o depoimento da Anna Maria Moog: "Ao receber o e-mail de Rosa (Mendonça de Brito)  propondo que eu fosse, dali a dois dias, participar de um jantar comemorativo do aniversário de mestre Antonio Paim, pensei que não conseguiria me desvencilhar dos compromissos prévios.  Mas logo decidi colocar tudo de lado e viajar para S. Paulo .  Valeu a pena. Foi uma enorme alegria estar com amigos de longa data, unidos justamente pela amizade, respeito e admiração que nutrimos pela figura de Paim. Ao longo dos anos, Antonio Paim tem sido nosso norte, a referência inelutável para seus amigos, ex-alunos e admiradores de sua obra, sobre todos os temas relativos à cultura, à filosofia, à moral e à política.  Acima de ser referência intelectual, reconhecemos nele o homem de bem, de postura discreta mas capaz de iluminar com suas palestras inteligentes e, por vezes, espirituosas, nossas reuniões.  O homem que nunca faltou  com seu apoio aos que a ele recorreram e jamais, jamais deixou um amigo 'na mão'.Inúmeros depoimentos sobre sua pessoa já o declamaram de sobejo. Por esse, e muitos mais motivos, o jantar dos 87 anos do jovem Antonio Paim foi festejado  com alegria, mormente porque proporcionou aos amigos a oportunidade de lhe demonstrar mais uma vez o carinho que lhe temos e a alegria de o abraçarmos".

A seguir, o depoimento de Rosa Mendonça de Brito: "O encontro com Paim, Augusta, Anna Moog, Leonardo Prota e Ricardo Vélez,   encontro de mestre e discípulos, colegas e amigos, em São Paulo, na Tasca do Zé e da Maria me fez retroceder no tempo e chegar a 1975, 39 anos atrás, quando da seleção para o Mestrado em Filosofia da PUC/RJ. Vencidas as duas etapas da seleção, a avaliação do projeto de dissertação e prova de língua estrangeira, tinha que encarar uma entrevista com três professores do Programa. Lembro-me que tive de passar pelo crivo de Celina Junqueira e de Antonio Paim, não me recordo do nome do outro professor. Naquele momento, quando da entrevista, uma pergunta de Paim me marcou profundamente. O mestre perguntou: 'EU GOSTARIA QUE VOCÊ ME EXPLICASSE POR QUE O HUME DESPERTOU O KANT DO SONO DOGMÁTICO?' Minha resposta foi: 'não sei, faço tal afirmação porque ela sempre esteve presente nos livros que estudei e nas aulas dos meus professores, mas nunca li ou ouvi qualquer explicação sobre a afirmação'. A resposta para o desconhecimento foi uma bela aula que nunca mais esqueci. Aceita, após aprovação na seleção, para compor a turma de Mestrandos de 1976, voltei a encontrar Antonio Paim em sala de aula. Minha intenção era fazer o Mestrado em Filosofia da Ciência, mas suas aulas me levaram a optar pela área de Filosofia Brasileira e procurá-lo para pedir - e confesso que bastante temerosa -, para que ele me orientasse. Para minha satisfação, ele aceitou. Naquela jornada, a fim de suprir a minha deficiência de conhecimentos - me sentia uma formiga diante de elefantes - e não decepcioná-lo, estudava pelo menos 18 horas por dia. Entrava na PUC às sete da manhã e saía às dez da noite, quando a Biblioteca fechava. Em casa, estudava pelo menos até 2 da madrugada, mas valeu a pena! Paim se colocava a disposição e, além disso, disponibilizava livros, orientava na busca de documentos e obras que deveria estudar. Defendida a Dissertação, em 1979, voltei para Manaus, mas não perdi o contato com o Mestre, que já considerava amigo. Com a criação do Doutorado em Filosofia Luso-Brasilera, na Gama Filho, submeti para a seleção de 1982 o meu Projeto de Tese com tema sugerido por Paim, feito da seguinte forma: 'Você topa realizar um estudo sobre a Filosofia de Kant no Brasil? É um estudo denso, mas é muito importante para o pensamento brasileiro'. Eu lhe perguntei: 'O senhor acha que eu tenho competência para realizar este trabalho?'  A resposta foi: 'sim, tenho certeza que você fará um bom trabalho'. Era um estudo que ele pretendia realizar 5 anos mais tarde, mas que, acreditando na minha capacidade, o delegou a mim. Diante da demonstração de confiança,  senti-me lisonjeada e, apesar de apavorada com a dimensão e profundidade do estudo, resolvi aceitar o desafio. Enfrentei algumas dificuldades: doença, fechamento do setor de obras raras da Biblioteca Nacional, 2 filhos pequenos (Márcio com 1 ano e meio e Gisele com dois anos e oito meses), falta de empregada de confiança. Apesar disso, consegui com a orientação segura e indispensável de Paim, concluir o doutorado em três anos, tendo a honra de ter como membros da banca de defesa, além de Antonio Paim, Anna Maria Moog, Creuza Capalbo, Ricardo Vélez e Aquiles Guimarães, amigos queridos a partir de então.Naquele momento, além da dimensão de educador, descobri em Paim uma dimensão humana fantástica. Nunca passou a mão na minha cabeça, ao contrário, exigia o máximo de mim, cobrava o tempo todo, mas ajudava sempre através de discussões, de indicação de onde encontrar com pessoas ou instituições o material para o desenvolvimento do trabalho que envolvia pesquisa em obras raras. Evaristo de Moraes Filho, por intermédio de Paim, me disponibilizou a sua biblioteca particular, em sua casa, para que ali realizasse estudos em obras não encontradas em outro lugar. Paim fez muito mais! Levando em consideração que eu tinha duas crianças pequenas, fazia a minha orientação em seu apartamento no Leme, com isso, tornei-me amiga de Rita, sua mulher, e suas filhas Juliana e Augusta. Toda semana, quando ia para o encontro de orientação e não tinha com quem deixar os meus filhos, eu os levava. Juliana e Augusta ficavam com eles enquanto me era dado o privilegio de receber magníficas aulas. Paim foi fundamental para o meu desenvolvimento intelectual. Ser-lhe-ei eternamente grata. Ele será sempre o meu guru e mestre favorito!"



sexta-feira, 4 de abril de 2014

E a música é …? José Maurício de Carvalho.


    http://www.youtube.com/watch?v=Z-2AngS_Z5k

O crescimento econômico do Brasil nas últimas décadas, somado à consolidação da democracia no mesmo período, deu ao nosso país destaque e visibilidade que ele não tinha. O mundo voltou os olhos para o Brasil, como passou a observar com maior atenção outros grandes países que cresceram economicamente: Rússia, Índia e China. É claro que apesar do desenvolvimento econômico continuamos com muitos problemas sociais e de infra-estrutura, o que não é estranho já que mudanças profundas são para mais de uma geração. Ainda assim o modo de ser brasileiro tornou-se uma curiosidade universal até porque o país se propôs a realizar dois grandes eventos da atualidade: a Copa de 2014 e as Olimpíadas de 2016. A visibilidade aumentará mais ainda nos próximos anos.
Esta redescoberta contemporânea do Brasil pelo mundo não deixa de ser curiosa e ajuda a olhar para nós mesmos com outros olhos, isto é, com os que de fora nos enxergam. A satisfação e espírito patriótico cresceram aqui dentro e o mundo começa a enxergar as coisas boas que estamos realizando. No entanto, esta onda brasílica que percorre os cinco continentes possui um lado meio cômico, meio histérico que antes de divertir me incomodou bastante: Luan Santana e sua música nomeada de brega sertaneja. A tal música está longe de ser sertaneja, pelo menos não tem nada a ver com a chamada música de raiz, mas hoje é tocada nas grandes cidades e no interior. Quanto a ser prega isto pode ser, eu não saberia classificar.
E depois de Ai se eu te pego, o país de músicos do quilate de um Pe. José Mauricio, Carlos Gomes, Ari Barroso, Francisco Braga, Henrique Oswaldo, Leopoldo Miguez, Lorenzo Fernandez, Radamés Gnattali, Cláudio Santoro, e outros tantos populares como Pixinguinha, Lamartine Babo, Francisco Alves, Cartola, de ritmos tão diversos como bossa nova, jovem guarda e tropicalismo, de folclore tão rico e variado com: baião, batuque, bossa nova, choro, lundu, maracatu, maxixe, samba, modinha, virou o país de Michel Teló: ... Delícia, Delícia, assim você me mata (...). Nos últimos meses é um tal de jogador de futebol, jogador de tênis, jogador de basquete imitar a pornodancinha de Luan Santana para celebrar seus triunfos atléticos que a cena ficou cômica. E a moda ganhou mundo, pois não apenas os atletas e artistas, mas o público imitando seus ídolos procura também repetir a já conhecida dancinha. Como português é língua pouco conhecida o povo pelo mundo afora não tem a menor ideia do que se canta e viaja na fantasia dos gestos mesmos. O aborrecimento inicial que tive hoje é pura diversão, povos que imaginavam que nossa capital era Buenos Aires ou que aqui se chamava Bolívia estão sob nossa influência cultural e de que nível! Estou adorando e a vingança será completa quando os americanos, protestantes de raiz, aderirem a dancinha pornoerótica, se chegarem a tanto. O que não farão quando descobrirem a música de Vila Lobos? Terão orgasmos múltiplos na Quinta avenida. Até os frios japoneses se curvarão ante produção tão magnífica, não? Se eles gostam de Michel Teló como responderão a Carlos Gomes? Acredito que em êxtase completo.
Enquanto o mundo gira e o país real encontra-se afogado pelas águas de verão na sua habitual imprevidência e falta de planejamento, o mundo dança ao som de ai se eu te pego, ai se eu te pego. Como classificar mesmo a música: brega sertaneja? Não, é lixo mesmo. E a ela a história dará o mesmo destino do último sucesso do nível: minha equinha pocotó. O que se espera é que nenhum movimento popular de protesto resolva levar também o jovem cantor brega sertanejo e seu rebolado ao Parlamento, como levou o cantor de minha equinha pocotó. Aí já não me divertiria tanto.



domingo, 30 de março de 2014

A CORRUPÇÃO POLÍTICA NO BRASIL: QUEM PODE ACABÁ-LA? Selvino Antonio Malfatti.





Todos os cidadãos desejam acabar com a corrupção. Mas quem pode fazê-lo? Apliquemos o método da eliminação. Comecemos com o executivo. Este evidentemente não será capaz, pois é ele exatamente quem a promove. É ele que negocia com parlamentares, empresários, partidos ou mesmo intelectuais para receber os apoios. Então, o executivo fica descartado.
O legislativo? Com certeza não, porque individualmente um que outro aceitaria pautar-se pela honestidade, mas o todo engole o individual. Como a pressão do executivo se faz sobre a totalidade, isto é, corporativamente, as individualidades devem se curvar perante o todo.
O Judiciário? Com certeza é o único que poderia acabar com a corrupção. Embora tenha um agravante da nomeação do executivo, o juiz deveria rasgar a ficha de filiação partidária quando ingressasse neste poder. No Brasil, por exemplo, a maioria da suprema corte ou foi nomeado por Lula ou Dilma. Mas mesmo assim o judiciário é a última esperança. Vejamos o que aconteceu com a horrenda corrupção política italiana apoiada pela máfia. O judiciário italiano conseguiu vencê-la inclusive com sacrifícios cruentos até mesmo no judiciário.
O mundo político italiano, nos anos Noventa, vinha marcado pelos radicalismos partidários que caracterizavam as administrações Provinciais e Municipais. Estes radicalismos eram decorrentes de facções partidárias estruturadas em cima de ódios e rancores entre  famílias tradicionais e aristocráticas locais. Cada facção identificava-se com um partido. Esta, ao chegar ao poder fazia a política da exclusão dos adversários, fechando os espaços na administração, ensino, sistema financeiro. As listas de candidatos privilegiavam os amigos e parentes do partido majoritário.  Se alguém levasse o caso perante a Corte judiciária, o processo, ou chegava atrasado ou depois da eleição. Taxavam-se impostos conforme as exigências dos correligionários. A própria justiça era influenciada pela ação dos partidos[1]. Mas, até que esta rede de corrupção se manteve dentro de parâmetros que não levassem perigo à sociedade como um todo, foi tolerado. Afinal, depois de alguma reviravolta, o novo vencedor faria o mesmo e compensaria. No entanto o quadro começou a chegar ao limite do tolerado, quando ocorrem suspeitas de que já se haviam estabelecidos liames entre a política e o crime organizado. Começou então o poder judiciário organizar uma ação sobre esta suspeita convocando políticos para deporem. Este foi um dos acontecimentos mais devastadores em termos de desgaste perante a opinião pública e de discórdias internas para os partidos políticos tradicionais, em particular na Democracia Cristã. Os mais importantes tiveram lugar em Milão, batizados com o nome de Mani pulite (mãos limpas). Como o grau de corrupção era endêmico na cobrança de valores extras, chamados “tangenti”, a opinião pública criou um quase “ideal-tipo” de corrupção, localizado numa cidade imaginária, a Cidade das Tangentes, ou Tangentopoli.
O ponto de partida ocorre em fevereiro de 1992 com a detenção do socialista Mario Chiesa. Em março, como se viu, é assassinado, em Palermo, o eurodeputado Salvo Lima. Em maio, novamente em Palermo acontece o atentado com morte contra  o juiz Giovanni Falcone. Em julho acontece a morte de outro juiz Paolo Borselino, também em Palermo. E em dezembro, o deputado socialista Bettino Craxi é convocado pela Justiça. Há tentativas de serem freados os inquéritos por parte do governo que previa uma solução política para a questão. No entanto, em março de 1993, o Presidente da República Oscar Luigi Scalfaro veta o decreto. No mesmo mês, o judiciário de Palermo convocado para depor o democrata cristão Mario Andreotti, Presidente do Conselho. A partir deste, foram envolvidos grandes expoentes da política italiana, mormente membros do partido da Democracia Cristã. Um após outro, os cabeças do partido foram chamados a prestar depoimentos, tais como Arnaldo Forlani e Antonio Gava. Nestes inquéritos a justiça não se preocupou em distinguir os diversos tipos de crimes, nem mesmo resguardar a possível inocência dos acusados. No mesmo banco dos réus estavam juntamente  ministros, executivos, empresários, e bandidos, sem se falar que  o processo para os políticos era de tal maneira que, pelo simples fato de serem convocados pela justiça, publicamente transparecia a idéia que estavam imputados de culpa, ao menos moralmente atingidos.  As acusações, embora não confirmadas culposas, perante a opinião pública apareciam como definitivas. Com isso, muitas vezes tardiamente,  foi reconhecida de não poucos a inocência dos acusados. Os processos envolviam financiamentos ilícitos de partidos e corrupção estabelecendo-se uma correlação real com o mundo do crime, quando deveria ter sido apenas hipotética, que somente poderia ser reconhecida, como mais tarde foi, em poucos casos. No entanto, naquele momento, Mani Puli igualou a todos os acusados, provocando verdadeiras decapitações políticas.  Os inquéritos queriam levar à conclusão de que havia uma relação sistêmica entre política e negócios econômicos e com isso envolveu o mundo empresarial, políticos e máfia.
A reação imediata foi a fuga tanto de filiados dos partidos, mormente os tradicionais, como Democracia cristã e Partido socialista, como dos homens de negócios da política. Claro que este fenômeno atingiu também partidos de oposição mas em menor escala e com efeitos menos sensíveis. Os grandes partidos de governo, e em primeiro lugar a Democracia Cristã que estava no governo desde 1945, foram atingidos no coração. O grau de desgaste político foi incomensurável, e seu poder  ficou  corroído.
A queda livre, porém, não havia chegado ao final, era apenas o início do tornado. Em março ocorre o assassinato de Salvo Lima, na Sicilia, amigo de Giulio Andreotti.  Este acontecimento leva a uma hipótese, por parte da Justiça, de que haveria relações de interdependência entre os partidos e a máfia, objetivando com isso explicar os homicídios e atentados tais como dos juízes Giovanni Falcone e Paolo Borselino. Evidentemente que isto levou a Andreotti, que  fora Presidente do Conselho,  1991, pela Democracia Cristã. Apesar de ter sido absolvido após dez anos, a absolvição não convenceu a opinião pública, pois a sentença não se apoia sobre a inocência, mas sobre falta de provas materiais para que o poder jurídico pudesse enquadrá-lo dentro do crime organizado, isto é, não se pôde constatar uma relação entre o mundo legalidade-economia-criminalidade. A idéia que aflorou foi que Andreotti não era um mafioso que fazia política, mas um político que usa a máfia. As questões ético-políticas continuaram a subsistir.[2] No entanto, Andreotti, como homem público da Democracia Cristã, estava irremediavelmente atingido.   Aliás em 1999, quando da absolvição,  o partido da Democracia cristã nem mais existia. Perante a opinião pública, a Democracia Cristã provocou uma sensação de frustração, de vazio e mesmo de traição. Os estratos médios baixos, os agricultores, as mulheres, enfim, todo o eleitorado que a sustentava, além dos motivos políticos tinha outros valores nos quais se identificava na democracia cristã, entre os quais os religiosos. Aquela confiança atribuída à Democracia Cristã converteu-se primeiramente em incredulidade, depois em estupefação e finalmente em revolta, por ter sido, como pensou, tão cinicamente traída
No Partido Socialista o mais atingido foi o líder Bettino Craxi que também fora Presidente do Conselho por duas vezes, em 1983 e 1986. Craxi se tornou um símbolo de um político corrupto, que entrelaçava sistemicamente política com negócios.
Os crimes de Tangentopoli podem ser classificados sob vários critérios. Seguimos o critério de Luca Ricolfi[3]. Conforme este autor, as acusações de crimes podiam ser classificados em a) abuso de poder, b) econômico-fiscais e patrimônio, c) potencialmente de mera transgressão, d) Comportamentos violentos ( atentados, homicídios, seqüestro de pessoas),  e) associações ( mafioso, delinqüente, subversiva, militar, partido fascista), f) Opinião e informação ( revelações de segredos de ofício, instigação a desobediência às leis, difamação, vilipêndio de instituições, apologia ao fascismo, e outros),  g) Rixa e conflito, h) outros ( danos efetivos, comportamentos dolosos, atos provocativos).  
Um sintético inventário dos inquéritos judiciais nos levaria a nada menos que 914 processos, envolvendo 179 tipos de crimes. Dentre estes, os mais citados foram corrupção inerente ao cargo ( 165), extorsão ( 167), divulgação de notícias falsas ou tendenciosas ( 170), falsidade ideológica, de informação e escrita  ( somadas as três:  511), Inobservância de ordens de autoridades ( 179), ameaças obrigando a cometer crime ( 169), acordo entre contribuintes para o não pagamento de impostos ( 162), atentados ( 156), homicídios ( 75),  enfim uma infinidade de acusações.  
Em que pese o volume do(s) processo(s), a justiça levou e está levando à conclusão. Os corruptos foram julgados, condenados e a justiça foi feita. 
É um exemplo para o Brasil  







[1] MINGHETTI, Marco. I Partiti Politici e la loro Ingerenza nella Giustizia e nell’Amministrazione. Milano, Società Aperta, 1997, p. 103 a 105
[2] SCHIARRONE, Rocco. Il Processo Andreotti e La lotta alla Mafia, Il Mulino. Bologna,  p. 496 a 501,  settembre-ottobre 2001. 
[3] RICOLFI, Luca. L’Ultimo Parlamento: sulla Fine della Prima Republica. Roma, La Nuova Italia Scientifica, 1993, p. 157 a 161.

sexta-feira, 21 de março de 2014

A arquitetura e a vida. José Maurício de Carvalho




Quando apresentou sua comunicação O mito do homem além da técnica no Congresso de arquitetura de Darmstäder, em 1951, Ortega y Gasset estabeleceu, não de forma proposital, uma polêmica com um dos grandes filósofos alemães daquele momento: Martin Heidegger. O alemão, no mesmo Congresso, apresentara uma outra comunicação denominada Edificar, morar e pensar.
A divergência, Ortega explicou detalhadamente num artigo denominado Anejo: En torno al colóquio de Darmstadt, 1951 que foi publicado no jornal espanhol Tánger. Seu núcleo estava na interpretação do termo wohnen (habitar), usada por Heidegger, numa reconstrução etimológica, como habitação. Na interpretação de Heidegger wohnen está próximo de bauen ( buan), significando ambas sou, no sentido de que estou vivo. Na tradição latina, explica Ortega, esse mesmo sentido de crescimento orgânico veio do verbo nascor, raiz de natura ou natureza em português. No entanto, esclarece Ortega, mesmo ficando na tradição indogermânica é difícil que as palavras wohnen e bauen significassem ser equivalendo-se, pois ser é uma ideia abstrata demais para estar na raiz da língua. A discordância de Ortega não está na possibilidade de reconstruir etimologicamente os termos, no que Heidegger era um mestre notável, mas na tentativa de fazer isto fora do que Ortega denomina campos pragmáticos. Campos pragmáticos, o que é isto?
Por campo pragmático, Ortega y Gasset entende um conjunto de palavras que se associam num determinado espaço vital. A vida humana possui diversos espaços vitais como o mundo dos negócios, da religião, do amor, da arte, do saber, etc. Parece a Ortega que não basta reconstruir o historicamente o sentido de uma palavra se a reconstrução for desconectada do campo vital. Só entendemos a vida humana articulada nesses campos pragmáticos.  A tentativa de reconstrução etimológica de Heidegger ficou incorreta porque ele desconsiderou os campos pragmáticos. A noção orteguiana de campo se sustenta na compreensão de vida humana como realidade circunstancial, a ponto dele escrever nas Meditações do Quixote que "eu sou eu e minha circunstância e se não salvo ela, não salvo também a mim". Não há, portanto, existência humana fora do mundo.
O artigo orteguiano, bastante longo, foi publicado aos pedaços durante sete dias de 14 a 21 de janeiro de 1953 numa espécie de novela para povo culto que acompanhou e comentou os textos do filósofo. O resumo do artigo é fundamental para entendermos a posição de Ortega no Congresso de arquitetos de Darmstäder em 1951. No artigo Ortega trata a arquitetura como a arte pela qual o homem reconstrói sua relação com o mundo, o que fazia muito sentido para os arquitetos alemães, ocupados no início dos anos 50 com a reconstrução do país quase todo destruído no final da Segunda Guerra Mundial.
Ortega reflete com os arquitetos sobre o sentido da arte de construir e chama atenção para o seu caráter coletivo. O verdadeiro arquiteto é o povo, a nação. Ortega chama atenção dos arquitetos que se uma cidade fosse construída por arquitetos geniais, porém cada um por si, sem nenhuma relação com os demais, a cidade levantada seria um desastre. Ainda que cada edificação individualmente pudesse ser interessante, o conjunto seria bizarro. As edificações disputariam entre si de forma a chamar atenção só para ela desconectada do conjunto, como faz um sujeito imaturo que, num evento social, quer chamar atenção para si. Assim, se um arquiteto faz um projeto pessoal, diferente do que foi elaborado pelo povo não é propriamente um bom arquiteto, perde-se do estilo, afasta-se de grande arquiteto: o espírito coletivo. Escreveu Ortega (1997): "Os edifícios são como um gesto social. O povo inteiro fala neles. É uma confissão geral da chamada alma coletiva" (Anejo. O. C., v. IX, Madrid, Alianza, p. 627).
Como entender a posição de Ortega? Queria ele dizer na comunicação feita naquele Congresso que o arquiteto não é um técnico que pode ser genial quando projeta, na intimidade de seu escritório de trabalho, uma edificação com a qual o homem se adapta ao meio ambiente, ordinariamente inóspito? Suas palavras significariam que não há espaço para a inovação, mas apenas a repetição de estilos que se consolidaram na história de um povo? Entendo que não é o caso.
O intento inicial de Ortega y Gasset parece ser o de mostrar a contribuição do filósofo para os diversos campos do saber. O filósofo não é um superarquiteto que vai dizer aos arquitetos como tocar seu trabalho. Assim como o filósofo não é um artista quando reflete sobre a arte, nem se torna sacerdote quando pensa a religião e a fé, nem pretende ser cientista ou substituí-lo quando fala da ciência. O filósofo não vai se sentar em seu gabinete de trabalho para fazer um projeto arquitetônico. O que ele faz então? O que faz é aclarar as coisas, deixá-las compreensíveis, no tanto que isto é possível considerando que a arte de construir é parte da vida humana. E há mais, não é ele que ordinariamente cria a necessidade da clareza, é a sociedade que coloca o problema e espera uma resposta. É a sociedade que num determinado momento quer saber o que é a ciência e porque ela é válida? É o grupo social que pergunta pelo papel da arte na vida e o que se quer com as religiões.
Quanto ao sentido coletivo da arquitetura o que parece Ortega deseja destacar é que a cidade é obra coletiva de um povo. Não é possível que alguém construa, seja ele um arquiteto formado ou um arquiteto popular, sem considerar o conjunto que ali se encontra e que foi obra do povo. Ainda que haja espaço para inovação ela precisa ser guiada pela arte e pela harmonia. Pela arte na execução de obra graciosa e funcional, na harmonia para respeitar a ordem e disposição das partes no todo, considerando as novas edificações: o volume, os materiais empregados, a funcionalidade do conjunto, o uso concebido e consagrado. Uma obra fora deste conjunto é como um corpo sem conexão com o pensamento, para usarmos a expressão de Leibniz na sua concepção de harmonia pré-estabelecida. Assim, não parece que Ortega estivesse negando a habilidade singular do técnico arquiteto, sua contribuição pessoal na recuperação de um monumento ou na edificação de outro. A liberdade pessoal de criação fica assegurada balizada pelos elementos coletivos que presidem a edificação da cidade ou monumento. Se assim for como entendemos que é, Ortega estava defendendo o profissional formado já que ele, melhor que o arquiteto popular, embora não exclusivamente, tem sensibilidade para perceber a dinâmica de crescimento da cidade, a necessidade de preservar estilos já consagrados, o treinamento para incorporar a estética no espaço edificado. E dizia mais, os arquitetos alemães tem um sentido de história que os arquitetos de nações jovens (como os americanos) não possuem.

Toda a discussão abre espaço para a tese de que as novas edificações devem respeitar o  espaço já edificado, dando especial relevo as cidades históricas e seus monumentos que são síntese da história do povo. Elas devem ser preservadas e mantidas como expressão da cultura do povo. Nelas com o maior cuidado devem ser pensados os novos bairros e edificações, nelas as inserções só podem ser feitas com extrema responsabilidade.

sexta-feira, 14 de março de 2014

ÉTICA, MORAL E LEI. Selvino Antonio Malfatti





Se os gregos se caracterizam pela discussão filosófica da política, os romanos têm a peculiaridade de pô-la em prática. Experimentaram todas as formas de governo: realeza, império, república e aristocracia; dos diversos regimes desde os ditatoriais até os populistas mais extremados foram testados; governaram-se desde o mais puro estado de direito até os mais violentos regimes de arbítrio. No turbilhão destas experiências políticas nasce o direito, exatamente da meditação moral, isto é, da necessidade de responder aos problemas de sociedades inseridas no espaço e tempo.
Dentre os vários teorizadores do direito romano, destaca-se Marco Túlio Cícero, nascido em Roma (106-43 a.C). Não se poderia enquadrar rigidamente Cícero numa escola exclusiva. Foi platônico, aristotélico, estóico. O Certo, porém, é que tinha aversão aos sofistas, por serem relativistas.
Cícero viveu a confluência da passagem da República para o Império. Na República havia um conjunto de instituições que de certo modo salvaguardavam alguns princípios éticos, extensivos a todos os cidadãos, mormente entre a aristocracia e o povo. O equilíbrio estava sendo atingido paulatinamente. Havia instituições que defendiam o povo e havia as aristocráticas. Os tribunos do povo era uma fortaleza contra as pretensões da aristocracia. Com isso, procurava-se possibilitar uma margem de liberdade, a qual poderia garantir os demais direitos, tais como a vida, propriedade e igualdade. Cícero se destaca na defesa da lei natural, universal, pela qual o mundo era governado por Deus, e através da natureza racional, o homem se torna um parente da divindade. Era o fundamento de uma moral universal ou ética. Através deste princípio advogava a igualdade dos homens. Desde o momento que os homens seriam iguais, todos os demais direitos adviriam por acréscimo. Com isso procurava isolar uma esfera de consenso pela qual se garantiria um respeito aos direitos fundamentais.
Para ele, o homem é um ser capaz de prever, e deduzir. O homem é complexo, dotado de intuição, inteligência, memória e razão. E originário da divindade. O fato de o homem ser racional, o eleva não somente acima dos seres deste mundo, como se iguala aos deuses. O homem e a divindade têm em comum a razão, por isso há entre eles uma associação, uma comum participação. Não só, porém, a razão é comum, como também a reta razão. E como esta é a Lei, podemos inferir, conforme Cícero, que homens e deuses constituem uma comunidade assentada na Lei. Evidentemente que esta não seria uma lei humana, senão os homens estariam submetendo os deuses e válida somente para os homens. Seria uma Lei superior, provinda da inteligência humano-divina, isto é, um conjunto de princípios ético-morais universais. E como aqueles que possuem uma Lei comum, também terão um direito comum. Ora, o direito em comum dá origem à Cidade ou Estado. Por isso, o conjunto do mundo todo é uma Grande Cidade, comum aos deuses e homens. E, por sua vez, o que há nas cidades senão relações de parentesco que diferenciam as famílias? Logo, homens e deuses, tendo em comum a mesma Lei, formam uma Cidade, unidos por laços de família e de raça.
O homem e a divindade estão ligados entre si é através da alma. Embora possa haver povos que não conheçam a Deus, nem por isso deixam de ter parentesco com a divindade. O conhecê-lo significa um acordar ou se dar conta de sua origem. Finalmente, entre o homem e a divindade há em comum a virtude, que nada mais é que a natureza perfeita, levada a sua perfeição.
Diante disso, o homem, copartícipe da divindade, recebeu da natureza todas as prodigalidades, desde os frutos da terra até os meios para chegar ao conhecimento, como é o caso dos sentidos.
Após esta demonstração da comunidade da Lei, direito e cidadania, entre homens e deuses, Cícero passa a mostrar que existe uma comunidade universal entre os homens. Conforme ele, os homens nasceram para a justiça e o direito se funda na natureza, na moral, e não na opinião, conforme pensavam os sofistas.
Nada há de mais semelhante e igual, do que a semelhança e igualdade de nós mesmos. Partindo-se do princípio de o homem o é pela razão, as dessemelhanças não passam de manifestações secundárias. Podem, por exemplo, as palavras ser diferentes, o sentido, porém, é o mesmo. Uma segunda prova da identidade da raça humana são as reações psicológicas, e as fraquezas como a vergonha, alegria, dor, polidez, brutalidades e outras. Se todos tivessem uma reta razão, todos poderiam partilhar do mesmo direito, pois ele é decorrente da mesma Lei. O problema, conforme ele foi quando os homens separaram o interesse e o dinheiro, isto é, foi sobreposto o que é particular ao geral, ou a separação entre natureza, lei e direito.
A terceira categoria de semelhança entre os homens é a moral. Afora casos patológicos, há uma moral universal, conforme Cícero, ou uma ética conforme Aristóteles. A idéia de bem, de justo está presente na consciência de cada homem, que é, precisamente a justa razão, cuja origem está na natureza. Esta moral da justa razão, universal, acima das sociedades concretas, raças e reações psicológicas é a esfera da Ética.

Erigindo a natureza como fundamento último de toda expressão do direito, Cícero atribui à lei um caráter universal, isto é, ela não é arbitrária, mas manifestação do próprio universo do qual o homem faz parte e nele está inserido. Sendo a natureza igual a todos, ela dá origem a leis de consenso entre os homens. Se elas se modificam conforme as circunstâncias, dão origem à sua concretização no “hic et nunc”, isto é, na moral. Se se tornarem gerais, passam a ser éticas e se forem obrigatórias atingem a categoria de leis.

sexta-feira, 7 de março de 2014

UM PREÇO A PAGAR. Gustavo Muller




O que assistimos na manhã do dia 27 de fevereiro de 2014, a absolvição dos quadrilheiros do PT pelo crime de formação de quadrilha (o pleonasmo é proposital), é o preço a pagar pelo que ainda resta de Estado Democrático de Direito. Mas esse preço pode ser diferenciado. Para aqueles que têm uma adesão instrumental à democracia, o voto do ministro Celso de Mello, que no final de 2013 reconheceu o cabimento dos embargos infringentes, foi a afirmação desse Estado Democrático de Direito, ou simplesmente Estado de Direito, tal como era a Alemanha nazista. Já para aqueles que vêem  na democracia um valor em si, o reconhecimento dos embargos estava na contabilidade.

Contudo, o que se assistiu naquela manhã foi fruto das manobras legais, mas não legítimas, na composição do Tribunal. Esse mesmo tribunal composto majoritariamente por indicações de Lula e Dilma e que já havia sido acusado de “Tribunal de Exceção”. Ora, um juiz que até ontem foi advogado de um partido deveria ter se declarado impedido. Alguém que já havia emitido opiniões acerca do julgamento, uma vez nomeado ministro, também deveria ter se declarado impedido.

O que se tratou na Ação Penal 470 foi a corrupção institucional pela compra de apoio parlamentar. Tal constatação foi explicitada no voto insuspeito de Celso de Mello. Portanto, embora a absolvição desse “bando” não altere o resultado das penas já em fase de execução, ela é revestida de um simbolismo, pois qualifica essa gente como “criminosos comuns”, quando, na verdade (e aqui endosso a tese dos presos políticos), tratou-se, citando mais uma vez Celso de Mello, “de um crime contra a República praticado nos mais altos escalões do governo”.
Com efeito, nesses quase 12 anos de governo petista, a reforma “intelectual e moral” está sendo feita. Provavelmente, em vistas do cenário de hoje, Dilma será reeleita, e teremos de conviver ora com a imbecilidade, ora com o cinismo de quem diz que a reeleição será “a resposta à tentativa de golpe das elites”. Mas, na verdade, a reeleição ocorrerá pela inércia da oposição e pela equivocada percepção do bom desempenho econômico. Equivocada porque ainda não se percebeu que a estabilidade está sendo posta fora. Uma vez reeleita, o populismo econômico acabará. Surgirão novos “blocões” no afã de abocanhar o que restar nos cofres públicos. Os black blocs se multiplicarão. Virá a crise de governabilidade e, aí, talvez tenhamos de conduzir uma solução democrática para a crise de grupo que exauriu seu modelo, mas que terá de ter sobrevida para que o país encontre novos rumos.
Dezesseis anos não chega a ser o tempo de uma geração. Teremos espaço para preparar a geração futura. Esse é o preço a pagar.

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