sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

Uma face da crise atual . José Mauricio de Carvalho

 



O sociólogo Zygmunt Bauman examinou esse assunto em A sociedade individualizada; vidas contadas e histórias vividas. No livro aprofundou temas tratados em outras obras aprofundando explicações e posicionamentos. Para o sociólogo, o que cada um considera como vida boa pode possuir variações, mas tem os contornos estabelecidos pela sociedade. Nela (BAUMAN, 2008, p. 8): “o veneno do absurdo é retirado, pelo costume, o hábito e a rotina, do ferrão da finalidade da vida.” É a sociedade que reconhece sentidos válidos e é ela que exclui aqueles indivíduos cujos significados não são adequadamente compartilhados. Por isso (ibidem): “todas as sociedades são fábricas de significado. Até mais do que isso: são sementeiras da vida com sentido.” O tema das buscas existenciais, fundamentais na filosofia e na psicologia fenomenológica ganham aqui um novo contorno, embora possamos considerá-lo responsabilidade individual, sem submetê-lo aos contornos sociais.

O sociólogo avaliou que o homem procura a transcendência, que o conceito representa o propósito da imortalidade, mas isso não lhe parece que se faça, pelo menos atualmente, pelo acolhimento de aspectos da natureza ou da cultura como em outros tempos. De todo modo, ele avalia, esse desejo humano alimenta a necessidade de realizar coisas que se estendam além da morte, como foi ao longo de muitos séculos. Um bom exemplo foram os faraós e imperadores que (id., p. 303): “ordenavam que seus restos mortais fossem colocados em pirâmides que resistiriam ao tempo e que ninguém poderia deixar de notar; as histórias de seus feitos deveriam ser gravadas em pedras indestrutíveis ou esculpidas em colunas e nos arcos.” Essas figuras notáveis tornaram-se personagens de livros de História ou de outras formas de registros. Uma outra forma de imortalidade é a família, cujo patrimônio genético se estende de geração em geração, dando continuidade à vida dos seus componentes. Comentou o sociólogo (id., p. 306): “de todas as entidades supra-individuais conhecidas pelos seres humanos por sua experiência diária, as nações e as famílias são as que chegam mais perto da ideia de eternidade”.

Um grande problema de nossos dias, provavelmente uma das fases mais duras de nossa crise de cultura, é que esse significado da imortalidade não mais se encontra no Estado e na família. O primeiro perdeu força devidos aos rumos do capitalismo financeiro e a segunda se diluiu em nossos dias devido a relações efêmeras de cada vez mais curta duração. Assim, as formas tradicionais de chegar próximo à imortalidade ou permanência se esfumaçaram. Era um caminho difícil e demandava esforço. Hoje há um número grande dos que querem alcançar a glória, mas não pelo esforço ou dedicação ao longo da vida. A imortalidade buscada por essa massa é pela notoriedade, passageira. Isso tem para o sociólogo relação direta com a forma atual do capitalismo (id., 308/9): “uma sociedade de consumidores sobressalentes e materiais descartáveis, na qual a arte de reparar e preservar é redundante e já foi esquecida. A notoriedade é descartável e instantânea, assim como a experiência da imortalidade.” Trata-se daquela máxima de que o importa são os quinze minutos de fama ou o máximo impacto antes do esquecimento imediato. Isso significa que a imortalidade agora se obtém pela fama instantânea e os benefícios. O que importa é a quantidade de prazer vivido e o lucro obtido.

Logo, como o que importa é tirar da vida o maior prazer enquanto se vive, o objetivo de viver é conseguir uma vida longa e prazerosa. A atenção está concentrada no que está acontecendo, deixando de lado o futuro, importa o happening. Para o sociólogo, a sociedade se beneficia de ambas as formas de como esse desejo de permanência se manifesta. No caso da busca atual, ela controla para que o significado da vida seja realizado dentro de (id., p. 9): “objetos verossímeis de satisfação, sedutores e dignos de confiança para instigar esforços que façam sentido e dêem sentido à vida.” Assim, a procura pelo prazer é estimulado se puder ser buscado pelos indivíduos dos diversos grupos, cada qual conforme suas possibilidades e interesses.

Esse olhar para a imortalidade sugere ao sociólogo que o propósito da atividade econômica, além de gerenciar a escassez de recursos, é evitar que as pessoas se coloquem diante da morte como algo real. Mesmo sem obter sucesso completo, a atividade econômica espera adiar, ao máximo, a preocupação dos cidadãos com a morte. Por outro lado, a economia oferece significados de vida como uma mercadoria valiosa para todos que queiram viver e não se ocupar tanto de nosso destino real. E tem um propósito adicional que é (id., p. 11): “acolher essa energia de transcendência que mantém a formidável atividade chamada ordem social em movimento; ela a torna necessária e possível.” Para Bauman, as culturas oferecem significados e manipulam o desejo de transcendência das pessoas, que beneficiam mais uns que outros. Quando um sentido já não é mais realizável por qualquer motivo, a sociedade dirige a atenção das pessoas noutra direção. Como a ânsia de transcendência é enorme, ela sempre precisa ser dirigida e acolhida socialmente.

Um aspecto destacado por Bauman é que as culturas reescrevem conteúdos e revisam fatos e que isso significa um necessário desvirtuamento da compreensão original do fato ou da explicação que tiveram. Isso foi apresentado com o conceito de articulação (id., p. 16): “a articulação é a construção de um conjunto de relações a partir de outro, e com frequência envolve desvincular ou desarticular conexões para vincular ou rearticular outras.” E como a História é recontada conforme as experiências das gerações ela vai sendo permanentemente desvirtuada. Isso se tornou um fato frequente, embora para o sociólogo (id., p. 18): “explicações alternativas foram buscadas, sendo encontradas em abundância na cultura de massa; com a mídia especializada em lavagem cerebral e em diversões baratas." Porém, pode não estar havendo propriamente um desvirtuamento, mas uma compreensão mais ampla ou elaborada dos acontecimentos. O desvirtuamento é uma possibilidade.

O problema nuclear do livro e, talvez de boa parte da obra de Bauman, seja entender porque a sociedade está se tornando um lugar de individualidades, onde o sentido da vida e outros significados ficam sob a responsabilidade, cada vez maior, dos indivíduos isolados. E estando sós isso é difícil de ter uma vida com sentido e adicionalmente todo o fracasso recai no próprio sujeito. Essa realidade também está invadindo os espaços públicos, que vêm se convertendo em lugar de interesses privados onde dificilmente se estabelecem laços sociais.

 

8 comentários:

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    1. Muito reflexivo, nos faz ver o invisível em nossas prioridades, o que mesmo tem valor?

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  2. Verdade, uma sociedade individualista e totalmente egoísta.

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    1. Grande aprendizagem, uma leitura agradável e profunda.

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  4. Consumidores e descartáveis, o incrível mundo que não trás esperança.

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    1. Tudo muda, quando resgatamos o valor do grupo familiar, criamos laços fortes de união.

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  5. A finalidade da vida, acredito que cada pessoa vai significar conforme suas experiências.

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