
Tivemos oportunidade de indicar que um aspecto da
crise de cultura que estamos passando decorre da insuficiência da subjetividade
cartesiana para representar a realidade humana em meio às mudanças recentes na
sociedade. E esse é um assunto fundamental pois (BAUMAN, 2005 b, p. 74): “a
essência da identidade responde à pergunta quem sou eu e, mais importante ainda
a permanente credibilidade da resposta que lhe possa ser dada.” Sabemos que
muitas descobertas relativamente recentes afetaram a percepção inicial de René
Descartes para quem, a resposta à indagação quem sou eu, foi que sou uma coisa
que pensa. E, devido a essa conclusão ou intuição, a subjetividade tornou-se a
base de nossa existência no mundo, vida pensada como espaço de liberdade e
finalidade do espírito em meio a um mundo natural determinístico. E a
subjetividade se definia por construir juízos (DESCARTES, 1987, p. 54): “a
respeito de coisas que lhe são clara e distintamente representadas pelo
entendimento.” E de todas as proposições evidentes a mais verdadeira e basilar
era a concebida na quarta parte do Discurso do Método (DESCARTES,
1987/1988, p. 47): “eu penso, logo existo.” Toda a argumentação cartesiana se
tornou insuficiente com as descobertas da psicanálise e especialmente pelos
contributos fenomenológicos a respeito do papel fundamental das circunstâncias
entorno ao eu, como explicou Ortega y Gasset nas suas Meditaciones del
Quijote.
O assunto tornou-se relevante porque mesmo os
ajustes contemporâneos da psicanálise e fenomenologia passaram a ser
insuficientes para tratar a subjetividade devido ao esfacelamento de
instituições que contribuíam para oferecer identidade ao indivíduo ou lhe
ofertavam segurança nesse entendimento, de tal modo que o pertencimento a
qualquer delas (família, clubes, classe, etc.) hoje em dia, não garante muita
coisa. Deixados à própria sorte essas pessoas sentem-se abandonadas e incapazes
de encontrar um caminho razoável por conta própria para considerar seu modo de
ser no mundo. Uma situação incômoda porque (BAUMAN, 2005b, p. 53): “feridos
pela experiência do abandono, homens e mulheres desta nossa época suspeitam ser
peões no jogo de alguém, desprotegidos dos movimentos feitos pelos grandes
jogadores.
O problema da subjetividade foi aproximado da
identidade num livro com esse nome (id., p. 50): “houve um tempo em que a
identidade humana de uma pessoa era determinada fundamentalmente pelo papel
produtivo desempenhado na divisão social de trabalho, quando o Estado garantia
(...) a solidez e durabilidade desse papel.” E havia outras referências para
ajudar nessa tarefa, como o sociólogo comentou, elas ajudavam cada pessoa a se
situar e descobrir um caminho para viver quando (id., p. 37): “lugares em que o
sentimento de pertencimento era tradicionalmente investido (trabalho, família,
vizinhança) estão indisponíveis e dignos de confiança.” E isso tornou-se um
problema (id., p. 30): “quando a identidade perdeu as âncoras sociais que a
faziam parecer natural, predeterminada e inegociável, a identificação se tornou
cada vez mais importante para o indivíduo. Assim, em nossos dias (id., p. 17):
“pertencimento e identidade não têm a solidez de uma rocha, não são garantidos
para toda a vida, são bastante negociáveis e revogáveis.” Logo, os caminhos
assumidos no decorrer da vida não asseguram uma direção, nem um lugar, nem
segurança, pois podem ser revertidos a qualquer momento.
A identidade como objeto de estudo ganhou destaque
nos últimos anos, antes não fora tema da ciência sociológica. E um dos motivos
disso é que ela deixou de ser pensada nos moldes da modernidade e se tornou um
processo de construção sem final previsível e permanente. O nascer numa classe,
por exemplo, não assegura o contínuo pertencimento a ela. O atual processo de
construção da identidade tem resultados imprevisíveis (id., p. 54): “a imagem
que deverá aparecer no fim do seu trabalho não é dada antecipadamente, de modo
que você não pode ter certeza de ter todas as peças necessárias para montá-la.”
E há um outro aspecto a se destacar no estudo do sociólogo, a construção da
identidade equivale a avatarização. E, por isso, é fundamental entender o que é
propriamente um avatar.
No sentido utilizado por Bauman, um avatar, é
uma representação digital ou iconográfica de um usuário, como
ocorre nos jogos ou nas redes sociais. Esse assunto também foi considerado em O
elogio da literatura. Naquele livro o autor tratou de um personagem, uma
imagem ou uma representação qualquer da vida social como um jogo que pode ser
reiniciado a cada momento, sem compromisso com o que foi feito no anterior.
Trata-se de um processo vital que pode ser recomeçado a qualquer tempo, zerando
o que se passou anteriormente. Não é como a encarnação feita de uma vez para
sempre numa família, comunidade e tempo (BAUMAN, 2020, p. 106): “mas um princípio
capaz de acontecer diariamente, hora a hora; esse de ocorrência é, ademais,
eminentemente adequado à multitarefa.” Essa seria a característica da
identidade nesses tempos líquidos.
A avatarização, ao contrário da noção de identidade
moderna, é um outro modo de viver as escolhas e engajamentos numa comunidade,
pois sempre é possível voltar ao ponto de partida e reiniciar a história
singular, sem que os aspectos anteriores sejam considerados. Ou ainda e creio
que é possível pensar em algo como no filme Avatar (de 2009) em que se
deixa o que somos entre parêntesis e se emprega identidades substitutas para
viver. De tal modo, que em ambos os casos (id., p. 107): “elimina-se a gradual
maldição da finalidade e do caráter consequencial das escolhas, decisões, engajamentos
e empreendimentos; acabando com escolhas fatídicas e mantendo a trajetória da
pessoa a uma distância segura dos pontos de não retorno.”
Feito isso, eliminam-se os riscos das decisões sérias e definitivas,
porque as opções podem ser novamente feitas num novo momento e outra vez
vividas com a reedição do avatar. Daí (id., p. 109): “uma infinidade de
escolhas em oferta, a insaciabilidade do desejo por novos começos e o sonho de
nascer de novo hoje se combinem para constituir o maior pêndulo da economia
consumista.” Dito de outro modo, deixamos a identidade moderna e sua estrutura
sólida para viver como um avatar, um outro de nós que não se fixa a nada. E
(id., p. 109): “avatares satisfazem nossos desejos fantasiosos de nos tornarmos
outra pessoa em outro lugar.” A pessoa assume outra nacionalidade, gênero, raça
ou religião e passa se reconhecer dessa forma. A noção sociológica da
identidade fornece elementos para mudar a forma como a pessoa se reconhece,
vive seus papeis, valores, crenças e memórias. A identidade social, que é o
cerne da exposição de Bauman, modifica a identidade psicológica e mesmo a
filosófica.
Uma outra forma alegórica de representar essa
maneira fluída de viver a identidade e transitar de uma à outra é o karaokê,
que é um jogo em que a pessoa assume personalidades diferentes à medida que
canta as diversas músicas tocadas num aparelho. Trata-se de cantar uma versão
da canção de alguém (id., p. 110): “canção de quem? Não importa ... o
importante é cantar.” O que conta é a performance de cada novo momento, sem que
seja preciso pensar no movimento anterior. Nada será feito de forma profunda ou
com sentido duradouro.
Uma forma específica de identidade é a nacional, descrita por Bauman no
seu livro de 2005b. Trata-se de uma construção eminentemente moderna, associada
à criação do Estado Nacional e frequentemente pouco considerada pelas pessoas
de uma determinada região que nunca se colocaram o problema de pertencimento a
um grupo bem mais amplo do que aquele próximo de sua experiência. Antes esse
assunto era pouco relevante, pois (BAUMAN, 2005b, p. 25): “sua forma de estar
no mundo eliminava a questão da identidade (nacional).” E a identidade nacional
tinha uma característica específica porque ao contrário de outras exigia
exclusividade. E mesmo outras identidades sociais possíveis dependiam da
confirmação ou endosso das autoridades do Estado. Nesses termos (id., p. 28):
“ser indivíduo de um Estado era a única característica confirmada pelas
autoridades nas carteiras de identidade e nos passaportes.”
Em tempos líquidos, onde os poderes do Estado
encontram-se diminuídos, a procura pela identidade nacional (id., p. 35): “vem
do desejo de segurança, ele próprio um sentimento ambíguo.” Contudo, num
ambiente internacional instável a busca de identidade é uma tentativa de
enfrentar a ansiedade de se sentir sem vínculos. E, nesse mundo em
transformação, há de se mencionar que há identidades nacionais melhores e
outras nem tão boas. Essas últimas, das quais não é fácil se livrar (id., p.
44): “esteriotipam, humilham, desumanizam, estigmatizam.” E, além dessas, há o
que o sociólogo denominou identidades de subclasse, isto é, aquelas que tiram o
valor da individualidade como: sem-teto, mendigo, mãe solteira, viciado ou
ex-viciado em drogas que o sistema procura manter sob vigilância e controle.