sexta-feira, 10 de maio de 2024

Bauman e a cidadania universal, um desafio para o nosso tempo. José Mauricio de Carvalho

 




A proposta de uma cidadania universal que foi tema de A Ideia de uma história com propósito universal, de Kant foi mencionada por Bauman em Amor Líquido. Trata-se de um assunto revisitado em A ética é possível num mundo de consumidores? Nesse último livro, a questão tem o mesmo tom do primeiro, mas o assunto foi melhor elaborado. O sociólogo observou que há excessos populacionais e de produtos no mundo contemporâneo, problemas que foram resolvidos pela Europa em outras épocas exportando bens e populações para outras regiões do mundo. Essa solução, no entanto, não é mais possível porque não há espaços disponíveis. Ele explicou (id., p. 232/3): “a Europa solucionou esses problemas produzidos internamente (e assim localmente) transformando outras partes do planeta em fontes de energia e recursos naturais de baixo custo, trabalho barato e dócil, e acima de tudo, em muitas áreas de descarte para produtos excedentes e redundantes.” Porém, como ele advertiu, essa antiga solução não é mais possível. Antes quando um europeu chegava num país africano ou asiático, mesmo tendo vindo de uma condição social baixa em seu continente natal era recebido como alguém muito importante. E como estão as coisas atualmente? Hoje ao chegar a um país estrangeiro o europeu está sujeito a muitos problemas, exceto quando sai numa excursão bem planejada e se porta como bom turista.

A realidade hoje em dia é que o mundo está quase todo ocupado, enfrenta dificuldades variadas e estamos desafiados a criar uma cidadania universal de que falava Kant (id., p. 229): “todos ficamos e nos movemos na superfície dessa esfera, não temos outro lugar onde ir e, por conseguinte, estamos condenados a viver para sempre na companhia e na vizinhança uns dos outros.” E então a questão posta por Kant e que ficou na prateleira por duzentos anos se reapresenta como atual. E há ainda a questão da hospitalidade universal proposta por Kant em A paz perpétua que é também um desafio atual pois (id., p.230): “a hospitalidade é a própria cultura, e não uma ética entre outras ... a ética é a hospitalidade.”

Este novo mundo produz perda de confiança nos europeus e estabelece o desafio de criar uma nova identidade europeia como de redefinir o seu papel na história mundial. Isso mesmo do ponto de vista geopolítico, a Europa não é mais o centro decisório do mundo (id., p. 234): “em meio ao caos planetário, são a Casa Branca, o Capitólio e o Pentágono que, entre eles, definem o significado da nova ordem mundial.” E o que se segue a esse domínio americano é algo parecido ao que se passou ao final do Império Romano com as invasões bárbaras, a incapacidade de o exército regular enfrentar o invasor produziu o caos, ansiedade e insegurança absoluta na sociedade.

Atualmente a poderosa máquina de guerra americana não consegue enfrentar com eficiência os ataques terroristas que usam outra lógica e atitude dos exércitos regulares. E ao tentarem responder às ameaças o resultado é a criação do caos, com o aumento de tudo quanto se esperava combater. Algo exatamente assim ocorre na Guerra em Gaza em 2024, com o texto de um livro de 2008. As palavras que se seguem se fossem escritas hoje não seriam mais precisas ou atuais (id., 327):

 

Dada a natureza das armas modernas, suas respostas aos atos terroristas devem parecer embaraçosas, e, com isso, mais terror, ruptura e desestabilização que os próprios atos terroristas poderiam provocar; e, assim, também produzem um salto adicional no volume de mágoas, ódio e fúria acumulados, aumentando ainda mais a fileiras de recrutas em potencial para a causa do terrorismo.

 

Por sua vez, essas células terroristas não enfrentam diretamente os exércitos nacionais, nem respondem à suas represálias. Elas acompanham em silencio e com desdém toda a movimentação dessas forças militares. E, a certo momento, com uma dúzia de homens provocam um mal que milhares de soldados não conseguem evitar. Esses grupos não necessitam de grande organização ou estratégia para provocar o caos (id., p. 239): “nem precisam projetar, construir e manter uma estrutura rígida de comando.”

Estando sob constante ameaça, as grandes cidades ocidentais, tornaram-se fortalezas onde se tenta criar barreiras para que os problemas globais não as alcancem, mas convenhamos isso não é possível. E essas cidades multiculturais e plurais são espaço de convivência de cidadãos e terroristas. Quanto as nações não estão a salvo das ações violentas. E completa Bauman (id., p. 239): “se há um império Global, ele se confronta com um tipo de adversário que não pode ser capturado nas redes que ele tem, é capaz de tecer e adquirir.” A guerra contra o terrorismo não pode ser vencida com meios militares, o que significa que Bauman sugere apostar na educação das pessoas e espera o apoio das nações ricas para resolver questões da vida social das mais pobres. E nessa missão a Europa desempenha um papel crucial porque os americanos não se preocupam com a coabitação planetária pacífica e nem enfrentam, como seria necessário, a pobreza, a desigualdade de recursos e a carência social.

Nesse mundo que está se desenhando a Europa não pode competir com o poderio militar americano e nem recuperar a liderança industrial do passado. Então ela terá que descobrir um novo papel na atualidade. E dada a sua história de guerras e sofrimentos, o continente tem condições de liderar as nações na busca pacífica de conflitos de interesses e na defesa da democracia. Quanto à sobrevivência da democracia há muitos críticos que julgam uma tarefa difícil de ser levada adiante sem a contribuição de uma identidade afetiva entre as pessoas, o que é complicado num mundo multicultural e multirracial. Sem a força do sistema democrático a coesão interna dos povos passa a ser buscada nos sentimentos nacionalistas e no fechamento das fronteiras, pautas que atualmente foram assumidos pela extrema direita. E como está mundo? Nada confortável para o europeu (id., p. 250): “o mundo já não está mais convidativo. Parece um mundo hostil, traiçoeiro, que respira vingança, um mundo que precisa se tornar seguro para nós, europeus.”

A Europa está se cercando contra imigrantes e se isolando das demais nações, mas não há como resolver os problemas da Europa isoladamente, apenas voltada para dentro. Isso porque (id., p. 251): “o destino da liberdade e da democracia em cada local é decidido e estabelecido no palco global.” Quanto a distribuição da riqueza, em que pese as inúmeras dificuldades, ela continua se concentrando (id., p. 252): “noventa por cento da riqueza global do planeta permanece nas mãos de apenas 1% dos habitantes da terra.” E a política de subsídios acaba privilegiando algumas categorias nos países ricos em detrimento de milhões que poderia melhorar muito a vida numa economia verdadeiramente livre e sem subsídios.

E como a Europa está enfrentando as alterações na economia global? Tentando manter investimentos e riquezas, se não mais dentro dos estados nações dentro da comunidade europeia. Isso muda um pouco o que estava sendo feito até aqui, mas não muda muito a antiga condição (id., p. 254): “a criação de unidades políticas maiores em si mesmas não altera em nada o modo de standortskonkurrenz enquanto tal.” O que fica claro é que se há uma necessidade da construção de uma comunidade global, não há uma base ético-política que lhe dê sustentação. Essa mudança é qualitativa e não apenas de ampliação geográfica, o que implica numa mudança qualitativa da organização mundial e não sabemos como a Europa irá caminhar.

 


sexta-feira, 3 de maio de 2024

REPARAÇÃO DA ESCRAVIDÃO. Selvino Antonio Malfatti

 



O presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, que ocupa um cargo simbólico-representativo, declarou que Portugal deve uma reparação ao Brasil, pelo período colonial no qual prevaleceu a escravidão.

A proposta não constitui uma novidade numa relação entre metrópoles e ex- colônias. Em 2022 o primeiro-ministro da Holanda pediu desculpas pelo envolvimento do seu país no escravidão e destinou um fundo de 200 milhões de euros para a educação às suas ex-colônias.

No ano seguinte, 2023, o governo canadense criou uma comissão de reconciliação com os povos indígenas e destinou 17,35 bilhões de dólares.

Por enquanto, Portugal limitou-se a pedir desculpas, sem outra iniciativa concreta. Inclusive o presidente português declarou perante Luís Inácio Lula da Silva, presidente do Brasil, que Portugal deveria assumir a responsabilidade pelo colonialismo e escravatura. Falou em “pagar os custos”.

Se for levado adiante, até se chegar ao consenso destes custos vai haver muita articulação política, negociação e debates. Falta, portanto, um projeto concreto sobre o qual incidirão os debates. Isto seria através de um valor pecuniário? E a quem e quanto atribuir?  Aos descendentes? Ou seria através de políticas sociais como educação, saúde, bem estar? E note-se que os indígenas também deveriam ser incluídos.

Far-se-ia através de entidades específicas, como quer Naira Leite, coordenadora da ODARA – Instituto da Mulher Negra, que na ONU, exigiu reparação, mas não foram bem recebidas as declarações por entidades brasileiras que cobraram posições mais concretas em termos de reparação. Mudando o discurso, para torná-lo mais objetivo, sugeriu que fossem ouvidos os interessados objeto de exploração pela escravidão. Diz Naira:

 “Minha grande preocupação é que as organizações da sociedade civil precisam ter uma participação ativa nos grupos de trabalho e nos processos. Caso contrário, não vamos alcançar um projeto de reparação que de fato dê conta de reduzir ou de responder aos impactos do colonialismo e da escravidão”.

Na ocasião, na ONU, foram apresentadas sugestões como criação de museus, centros de memórias e outros equipamentos políticos que lembrem a escravidão no Brasil. Outra sugestão foi de incluir no ensino oficial uma disciplina ou conteúdo denominado: “História dos Impactos Nocivos do Colonialismo Português para o Contexto Brasileiro”. Além disso:

- Firmar acordos efetivos com investimentos financeiros, salvaguardas da memória e parceria de trânsito dentre os dois países;

- Incentivar todos os países europeus que tiveram colônias e escravos que implantem medidas reparatórias;

- Combate à xenofobia e ao racismo com a população afrodescendente.

Já para Humberto Adami, presidente da Comissão da Verdade da Escravidão, da Ordem dos Advogados do Brasil, enfatizou os aspectos financeiros. Neste sentido sugere a criação de um fundo em dinheiro, inspirado no modelo para os judeus depois do Holocausto.

Em síntese, a questão é complexa pois envolve pessoas, entidades e países. Para chegarem a um denominador comum neste enredo, muito tempo, negociações, debates advirão.

Pensando bem: o Brasil já não teria se adiantado quando reservou cotas raciais (Pretos, Pardos e Indígenas) em concursos vestibulares e outros?


 

sexta-feira, 26 de abril de 2024

VIOLAÇÕES DA DIGNIDADE HUMANA- DIGNITAS INFINITA. Selvino Antonio Malfatti.

 

                                                 Papa Francisco I



Temas analisados pelo Papa Francisco I.

1.    Pobreza

2.    Guerra

3.    Imigrantes

4.    Tráfico de pessoas

5.    Abusos sexuais

6.    Violência contra as mulheres

7.    Aborto

8.    Maternidade sub-rogada

9.    Eutanásia e suicídio

10.  Descarte com pessoas com deficiência

11.  Teoria do gênero (gender)

12.  Mudança de sexo

13.  Violência digital

14.  Violência contra as mulheres

15.  Aborto

16.  Maternidade sub-rogada

17.  Eutanásia e suicídio

18.  I descarte das pessoas com deficiência

19.  Violência digital

Conclusão

Introdução

O pano de fundo da Encíclica são os princípios que regem a dignidade humana. Primeiramente a Encíclica cita a Revelação. Diante dela revela-se a dignidade ontológica, isto é, nata, por ser criatura humana e ter sido redimido pelo Salvador Jesus Cristo. Os seres humanos, todos eles são igualmente dignos independentes de suas condições, desde uma criança ainda não nascida até um ancião em agonia. Para tanto invoca o Antigo Testamento, os evangelhos, os pensadores cristãos, os ensinamentos dos predecessores e a visão dos filósofos Kant e Descartes. Por ser humano sempre é um fim e nunca um meio. Estabelece conclusivamente a dignidade humana, independente dos estatutos dos civis.

Podemos destacar alguns aspectos da Encíclica Dignitas Infinita. Em relação ao conteúdo dogmático em nada mudou: o sacerdócio continua masculino, o divórcio é condenado, o homossexualismo é visto como uma anomalia da natureza que a medicina pode corrigi-los.  O suicídio e eutanásia – mesmo os assistidos – ambos são condenados. Inova na análise da violência digital e no gender. A dignidade ontológica  desde Santo Tomás é reconhecida pela Igreja. O que o papa Francisco faz é aplicar o princípio à realidade social atual. Em alguns aspectos inova, pois nenhum papa até agora tinha enfrentado tais problemas. Voltaram ao debate eclesiástico temas sociais como a pobreza, desníveis remuneratórios, guerras, tráfico e outros

1.   A pobreza, Guerra, Imigrantes Tráfico e abusos.

A pobreza é um fenômeno contraditório, pois poucos têm muito, e muitos têm pouco. De um lado há países ricos nos quais internamente cresce a pobreza pelo fenômeno do surgimento de novas categorias pobres. Por sua vez nos países pobres umas poucas camadas vivem na opulência enquanto o restante da população amarga a miséria.

Outra praga que afeta os povos é a guerra. Junto com ela convivem os atentados, perseguições políticas e religiosas, causando ataques dolorosos à dignidade humana. Parece que estamos no alvorecer da Terceira Guerra mundial. Nada justifica as lágrimas da mãe vendo seu filho morto ou mutilado. Nada justifica um campo de batalha que matam dentro e fora. As guerras devem ser condenadas e banidas de todas as formas. Não existe guerra justa!

Os imigrantes são as primeiras vítimas da pobreza. Para eles não há mais lugar nem nos seus países, nem no estrangeiro. São párias dentro da sociedade. Contra isso todos se devem unir e salvar neles a dignidade de pessoas.

O tráfico de pessoas é uma vergonha para as nossas sociedades que se dizem civilizadas. Num mundo cheio de direitos parece que os únicos que os têm é o dinheiro.

Diante disso a Igreja denuncia e se insurge com o: “comércio de órgãos e tecidos humanos, exploração sexual de crianças, trabalho escravizado, incluída a prostituição, tráfico de drogas e de armas, terrorismo e crime internacional organizado”. Tudo isso viola a pessoa humana na sua dignidade.

Nada mais ataca a dignidade da pessoa do que o abuso sexual. A própria Igreja se vê diminuída na sua missão de salvar as pessoas pelo rastro de violações internas. Nenhum arrependimento pode sanar a ferida causada por este abuso.

A violência contra as mulheres é patente no mundo todo. Nas profissões, na economia, na política, no direito e até mesmo na religião. Continuando o papa, as mulheres pobres sofrem duplamente a discriminação, através da exclusão, maus tratos, violência, em que pese se encontrarem indefesas para fazerem valer seus direitos.

Destaca-se a violência do feminicídio dentre os mais difundidos no tempo atual.  O papa faz um apelo para que os países protejam as mulheres contra estes crimes horrorosos que grassam nas sociedades quer desenvolvida ou não.

Novamente o aborto é condenado in limine, pois se há ser humano desde sua concepção, tirar-lhe a vida não somente é crime civil, mas moral, atentando contra o marco inicial da dignidade.

Outro atentado contra a dignidade humana é a maternidade-sub-rogada. Isto porque tal prática na maioria das vezes não passa de um comércio, pois a c4riança torna-se objeto de compra. Uma criança é um dom divino e não um valor a ser comercializado.

Nos tempos atuais outro tipo de violação apresenta-se com vestes de dignidade (death with dignity acts). É o ato de eutanásia ou mesmo do suicídio assistido. Uma pobre criatura doente terminal sem consciência, abúlico é condenado à morte por pessoas conscientes e com livre arbítrio. Nosso dever é acompanhar até a morte, mas nunca matar, pois ainda nestas situações temos uma criatura humana digna.

O mérito da Encíclica é estabelecer um princípio norteador na análise e interpretação dos temas de maior relevância da atualidade. Aqui e lá estes temas mereceram interpretação. Mas até agora nunca tinha sido colocado um princípio que focasse a realidade vista pela Igreja.

O texto completo:

"1. (Dignitas infinita) Uma dignidade infinita, inalienavelmente fundada no seu próprio ser, é inerente a cada pessoa humana, para além de toda circunstância e em qualquer estado ou situação se encontre. Este princípio, que é plenamente reconhecível também pela pura razão, coloca-se como fundamento do primado da pessoa humana e da tutela de seus direitos. A Igreja, à luz da Revelação, reafirma de modo absoluto esta dignidade ontológica da pessoa humana, criada à imagem e semelhança de Deus e redimida em Cristo Jesus. Desta verdade extrai as razões do seu empenho em favor daqueles que são mais fracos e menos dotados de poder, insistindo sempre «sobre o primado da pessoa humana e sobre a defesa da sua dignidade para além de toda circunstância».[1].........ler mais

(www.acidigital.com/noticia/57795/texto-completo-da-declaracao-dignitas-infinita-do-dicasterio-para-a-doutrina-da-fe)




sexta-feira, 19 de abril de 2024

Ética e relações humanas, lições de Bauman. José Mauricio de Carvalho

 




 

A descrição das relações sociais de nosso tempo feitas por Bauman nos levam para um espaço social em que o outro é pensado como objeto de prazer. Ele é o sujeito/objeto de boas relações, mas fluídas, superficiais e efêmeras. No capítulo terceiro de Amor Líquido, Bauman nos pede para pensar sobre essa realidade. Ele faz uma avaliação dessa realidade numa perspectiva moral, considerando o compromisso com o outro como um fator estruturante da vida civilizada. E o ponto de partida de sua reflexão é um diálogo com Sigmund Freud para quem (id., p. 97): “a invocação de amar o próximo como a si mesmo, dizia ele (em O mal-estar da civilização), é um dos preceitos fundamentais da vida civilizada.” Assim, um olhar na perspectiva moral nos leva a um lugar diferente do que se encontra nos capítulos iniciais da obra. O ambiente social contemporâneo nos coloca em conflito com o mandamento do amor ao próximo, porque ele, aparentemente, contraria o que a psicanálise e a tradição ocidental, em geral, nos ensinaram a pensar. No entanto, por traz do aparente paradoxo há uma conciliação fundamental que pode ser formulada assim: para além do amor próprio o amor ao outro é decisivo para a sobrevivência da humanidade. Ele faz a vida do homem diferente da dos outros animais.

O amor-próprio nos vincula à vida, nos habilita a defendê-la e nos dá força para realizar a empresa. Bauman acreditou, como judeu fiel, que a vida vale a pena. Porém, ela pode, em algumas circunstâncias, seguir na direção oposta aos propósitos de sobrevivência e avaliar que algumas vidas nem sirvam para ser vividas. O fundamental é que o amor próprio é fruto das relações humanas, já que tem origem no amor do outro. Ele o explica (id., 100): “para termos amor próprio, precisamos ser amados. A recusa do amor – a negação do status de objeto digno de amor – alimenta a auto aversão. O amor-próprio é construído a partir do amor que nos é oferecido pelo outro.”

Uma tal condição torna preciosa a vida de todos os homens. Geralmente se mede o mal de uma ação pela quantidade de pessoas que alcança. Assim, grandes males nascem de um movimento que afeta muita gente, mas uma única pessoa atingida pode significar muito mal. Isso porque ela pode amar e ser decisiva na vida de muitos. Logo a questão não é de quantidade de pessoas atingidas, mas da extensão do mal perpetrado. Nesse assunto Bauman dialogou com outro filósofo judeu genial: Ludwig Wittgenstein. Ele reproduziu uma observação dele de que um ato é imoral não porque atinge muitos, mas porque toca profundamente um só homem (id., p. 102): “nenhum clamor de tormento pode ser maior que o clamor de um homem. Ou, mais uma vez, nenhum tormento pode ser maior do que aquilo que um único homem pode sofrer”. 

A modernidade abriu espaço para a brutalidade ser praticada sem culpa com a tese de algo razoável pode provocar um mal que não se deseja. Embora muitas vezes assim ocorra, a tese foi usada para justificar atos imensamente imorais como deixar crianças morrerem de fome num bloqueio comercial praticado numa guerra. Esta brutalidade, usada como justificação de muitas coisas, foi a que mereceu a reprovação de Wittgenstein (id., p. 102): “

O que Bauman não aprofundou é a origem da indignação de Wittgenstein. O lógico tinha por base uma fé religiosa que sustenta preocupações éticas o que justificou sua preocupação com a aceitação da brutalidade e violência. Uma fé judaico-cristã orienta que todos os valores servem à (id., p. 103): “vida humana e nada mais são que diferentes fichas para a aquisição do único valor que torna a vida digna de ser vivida. 

Este capítulo do livro nos coloca, pois, diretamente face à questão moral e funciona como um contraste ao que vemos ocorrer, mas especialmente aponta para o reconhecimento de que a pessoa humana é o maior e o principal de todos os valores, o que nos vincula à grande tradição dos modelos éticos ocidentais.

sexta-feira, 12 de abril de 2024

FEMINISMO X MACHISMO. Selvino Antonio Maltatti.

 





 

Paira no ar de forma liquida, no dizer Baumann, um conflito ora aberto, ora velado entre gêneros, sob a forma e matéria de feminismo e machismo. Concretamente mereceu uma análise por parte do sociólogo Alexis Lara, com o título: ‘Negacionisme de génere. Auge, expansió i mites de l’antifeminisme. Auge, expansió i mites de l'antifeminisme (Institució Alfons el Magnànim, 2024).

No México também é reconhecido o feminicídio como constata Marcela Lagarde quando o governo reconheceu a responsabilidade sua no assassinato de mulheres e meninas na cidade de Juárez entre 1995 e 2003. O mesmo aconteceu com a Corte Interamericana dos Direitos Humanos que condenou o Estado mexicano pelos mesmos delitos.

O feminismo consta como negacionismo na agenda de seus opositores, fazendo vistas grossas da realidade histórico-social.

Se num determinado momento e lugar uma sociedade aceita determinadas crenças e valores termos a janela de Overton. Quando alguma razão contrariar estas crenças apresenta-se o negacionismo. Isto ocorre com a questão de gênero, ou o papel de cada gênero tido como “certo” para uma determinada sociedade. Historicamente para mulher, por exemplo, cabiam as funções de garantir os valores da sociedade e da família, educar os filhos, desempenhar as tarefas domésticas. Enfim, à mulher cabiam funções da vida privada.

Politicamente só começa mudar no Brasil com a lei da participação política com o direito de votar, em 1932, pelo estatuto eleitoral e em 1934 pela constituição.

Após a conquista do voto, que seguiu os passos da Inglaterra, o movimento feminista avançou nestes 100 anos. Atualmente há o feminismo negro, o feminismo LBTI+ e de jovens. Por isso, o feminismo é um movimento disperso.

A disparidade de gênero acontece máxime nos cenários profissionais. Nos altos escalões é onde repousam as maiores disparidades. Na direção os homens ganham 51% a mais que as mulheres. Nas coordenações e supervisões, a diferença baixa, mas ainda assim ficam 31% a mais em favor do homem.

Por outro lado, o machismo, embora não tenha um movimento organizado, se manifesta de forma latente na disparidade de direitos entre homens e mulheres, índices elevados de violência de gênero, assédio, estupro, objetificação da mulher, disparidade de remuneração entre homens e mulheres nas mesmas funções.

Ainda assim há formas veladas de manifestação social de machismo. Alguns exemplos. 1. Alguém trata de um tema e quando se depara com a figura feminina coloca um “MAS”..2. Quando acontece algo envolvendo homens e mulheres, há alguém que lança a culpa nas mulheres. Acontece um estupro e alguém comenta: “mas o jeito que se veste!” 3. Perante um fato, como de uma manifestação forte de uma mulher, costuma-se dizer: “só mulher pensa assim”. 4. Em algum acidente envolvendo mulher  sempre tem alguém que diz: “só podia ser mulher”. 5. Há uma distinção entre assuntos de homens e mulheres. “Não te meta, isto é assunto de mulher”.

Diante do quadro exposto sobre feminismo versus machismo o que se pode concluir da relação homem-mulher é de: exclusão radical,  de amor, de autonomia entre ambos?

Para o machismo o homem é superior e a mulher subalterna, para o feminismo o homem é visto como uma relação de igualdade. Portanto, para o feminismo não há uma exclusão do masculino, mas uma relação de igualdade. Para o machismo, o feminismo é motivo hilário. A mesma conclusão chegou uma pesquisa entre homens e mulheres. Portanto, não passa de estereotipada a ideia de conflito irreconciliável entre homem e mulher ou de misantropia ou misoginia. Comprova uma pesquisa de 10.000 homens e mulheres em países diferentes, liderada pela Aífe Hopkins-Doyle, docente junto à l’Università di Surrey, a PsyPost.

Esperamos, através desta análise, ter contribuído em clarear os conceitos das relações entre homens e mulheres enriquecendo o debate entre os gêneros. Neste contexto o machismo na sua forma mais radical é o que mais acirra as relações de gênero, enquanto o feminismo quer a igualdade sem conflitos.

 

 

 

 

 

 

sexta-feira, 5 de abril de 2024

NEM CIÊNCIA, NEM FILOSOFIA PODEM PROVAR A EXISTÊNCIA. Selvino Antonio Mafatti





NEM CIÊNCIA, NEM FILOSOFIA PODEM PROVAR A EXISTÊNCIA. Selvino Antonio Mafatti

Desde os tempos mais remotos o homem quer vislumbrar a face de Deus. Atualmente pela ciência e no passado pela filosofia. A constatação geral é que todos os povos de todos os tempos e lugares apresenta uma ideia de um ser superior. A única exceção conhecida é um povo do Amazonas, os Pirahãs. Eles não têm nem passado, nem futuro, nem números e nem crença religiosa. Este povo conseguiu “converter” um missionário, o americano Daniel Everett, que se tornou ateu com a convivência.

Na idade antiga e média prevaleceram as provas da existência de Deus de cunho filosófico. Na antiguidade Platão e Aristóteles, por serem pagãos desenvolveram a ideia de um ser superior. Para Platão Deus é o artífice do mundo, através da teoria do mundo das ideias. Diversamente para Aristóteles, Deus é o primeiro motor isto é o impulso do primeiro movimento.

Santo Agostinho descobre a Deus através da fé. Segue o método dedutivo:primeiro eu creio, depois explico”. Já Santo Tomás encontra Deus através das cinco provas, de caráter indutivo. Deus é o Ato primeiro e o Motor inicial.

Na metade do século passado impôs-se a teoria da origem do universo através de uma explosão, o Big Bang. Alguns apressados tentaram logo interpretar a narrativa bíblica do Gênesis. A Igreja católica inicialmente tergiversou, mas venceu a tentação, abandonando a crença de alguns. Hoje os teólogos admitem a possibilidade da existência do universo antes do Big-Bang. Atualmente há um consenso de não se buscar verdades de fé na ciência. Em outros campos do saber pode ocorrer um diálogo fecundo, mas não na fé.

Mas a persistência no erro continua, agora através das constantes físicas, massa das partículas elementares com uma constante cosmológica. Elas são a descrição física do universo. Num total de vinte e seis as principais são :

Constante de Planck

Constante gravitacional universal

Constante de Faraday

Constante Pi

Não tentaremos explicar cada uma, pois foge a nossa alçada. Da constatação de que se estes valores fossem diferentes este mundo como é, não existiria, seria concluir mais do que as premissas. Fenômenos como o nascimento de estrelas, a biosfera como a conhecemos, a expansão do universo, tudo seria diferente se não fossem as constantes. Concluir, porém, a existência de Deus pela existência como são as estrelas, árvores, montanhas, pessoas seria ir longe demais. O argumento lógico a posteriori: Post hoc ergo propter hoc: depois disso, portanto, por causa disto. É a argumentação do Design inteligente.

Por isto, por enquanto, nem ciência, nem filosofia provam a existência de Deus.

domingo, 31 de março de 2024

Amor cristão . José Mauricio de Carvalho

 



Um dos autores mais perturbadores de nosso tempo é o sociólogo e filósofo polonês de origem judaica chamado Zygmunt Bauman. Ele descreveu o nosso tempo a partir de um conceito que elaborou e que o sintetiza em duas palavras: modernidade líquida. Com ele quis expressar que vivemos dias de uma crise cujas características mais marcantes são: a instabilidade e adaptabilidade das instituições e relações pessoais circunscritas às situações imediatas. Depois de difundir em Babel uma tese controversa que é a necessidade de se chegar a compromissos morais, mesmo quando não se tem um sistema ético disponível, Bauman voltou ao assunto em 2008, quando publicou A ética é possível num mundo de consumidores? (Edição brasileira é da Zahar, de 2011).

O pano de fundo dessa obra é a mesma indagação de uma outra intitulada Vida em Fragmentos, sobre a ética pós-moderna, livro de 1995, igualmente traduzido pela Zahar, em 2011. Ali o intelectual se indaga: é possível uma ética no mundo que vivemos? O pensador diz que vivemos num tempo onde as mudanças rápidas, intensas e profundas não param de surpreender. Esse mundo não oferece garantias de que as coisas terminarão à tarde como começaram o dia. E aí também temos algo já dito em livros anteriores (BAUMAN, 2011 b, p. 8): “planejar um curso de ação e se manter fiel ao plano, esta é uma empreitada cheia de riscos, porque a ideia de planejamento a longo prazo parece muito perigosa.” Enfim, é preciso estar preparado para viver em meio a grande instabilidade, inclusive nas relações humanas.

Os momentos de crise econômica e humana mencionados nos livro acima citados mostraram mudanças na forma de viver da sociedade ocidental de nossos dias. O que descreveu Bauman mostrou que as mudanças na organização da sociedade e suas instituições mudou a forma de viver, inclusive a forma de amar. Por sua vez, o comportamento dos indivíduos também contribuiu para dar nova configuração à cultura. O pensador observou um vínculo entre a vida social nos tempos líquidos, modo como descreve a sociedade contemporânea, e relações afetivas pouco duráveis que hoje observamos. Para ele, homens e mulheres perderam a habilidade de lidar com sentimentos, embora anseiem por um amor seguro e companheirismo não são capazes de sustentar relações intensas e duradouras que são aquelas capazes de oferecer permanência e amizade profunda. Ao contrário, vivem uma espécie de solteirice que consiste em não aprofundar nada e pensar a própria vida de forma isolada e egoísta, fazendo aquilo que lhe dá prazer sem pensar no outro e sem se preocupar com os acordos entre eles.

Portanto, concluiu Bauman, as pessoas de nosso tempo vivem uma contradição, elas dizem aspirar uma relação firme, permanente e densa, mas querem uma vida leve e sem compromissos, sem abrir mão dos próprios desejos em nome desses compromissos, pelo menos os de longo prazo. Não parece haver uma conciliação razoável entre essas expectativas tão opostas. Assim, diante das crescentes dificuldades de relacionamento, as pessoas procuram especialistas em comportamento esperando (BAUMAN, 2005, p. 9): “ouvir delas algo como a solução da quadradura do círculo: comer o bolo e ao mesmo tempo conservá-lo, desfrutar das doces delícias de um relacionamento, evitando simultaneamente seus momentos mais amargos e penosos.” Como se vê trata-se de um paradoxo sem solução possível, mas algumas alternativas de relacionamento frouxo vão ganhando forma nesses tempos líquidos.

O que assistimos crescer em nossos dias é o oposto do amor cristão. É o amor cristão a referência para o diálogo com o que encontramos em nosso tempo, para conversar com as contradições contemporâneas. Não para fazer renascer uma moralidade machista e hipócrita que foi superada pela saída da mulher para o mercado de trabalho e pela liberdade sexual permitida pelo controle médico da gravidez. Portanto, não se trata de desconhecer o mundo que está aí e suas exigências, nem transformar o cristianismo numa espécie de teoria da prosperidade econômica, o que ele não é, mas para encontrar nos ensinamentos de Jesus as bases de um amor que resiste ao imediatismo, inconsequência e desejo desenfreado por prazer. Um amor que não deseja mais que fazer o bem, como ensinou Agostinho de Hipona. E o que do Profeta de Nazaré ouvimos? A necessidade de amar os outros como a si e a Deus. Uma forma de amor que nunca deixou de considerar as fraquezas e limites humanos, mas sempre acreditou na possibilidade de uma entrega e responsabilidade que viesse do melhor que o homem pode fazer. Um amor balizado nos mandamentos de Moisés, que se concretiza em cada ato para o outro. Um amor que se fosse vivido assim traria uma antecipação do céu na terra e espalharia aqui o Reino que o Pai projetou para seus filhos. Isso porque Deus é amor e todo amor no fundo significa um encontro com Ele. E aqui ainda vive o homem no amor familiar, no amor que pensa no outro, que se entrega ao companheiro ou companheira, que se realiza no abraço do filho, que se alegra no sorriso dos netos e descobre na confiança e nessa entrega o melhor da vida. O melhor de uma relação que começa no tempo, tem limites em nossas necessidades terrenas, mas se projeta na eternidade. Sim, quem ama cresce como pessoa, nesse mundo e depois de nossa estada aqui.

 

quinta-feira, 28 de março de 2024

RESSURREIÇÃO. Selvino Antonio Malfatti

 



Michelangelo



Estava próxima a Páscoa dos judeus, e Jesus subiu a Jerusalém.

14.Encontrou no templo os negociantes de bois, ovelhas e pombas, e mesas dos trocadores de moedas.*

15. Fez ele um chicote de cordas, expulsou todos do templo, como também as ovelhas e os bois, espalhou pelo chão o dinheiro dos trocadores e derrubou as mesas.

16.Disse aos que vendiam as pombas: “Tirai isto daqui e não façais da casa de meu Pai uma casa de negociantes”.

17.Lembraram-se então os seus discípulos do que está escrito: O zelo da tua casa me consome (Sl 68,10).

18.Perguntaram-lhe os judeus: “Que sinal nos apresentas tu, para procederes deste modo?”.

19.Respondeu-lhes Jesus: “Destruí vós este templo, e eu o reerguerei em três dias”.

20.Os judeus replicaram: “Em quarenta e seis anos foi edificado este templo, e tu hás de levantá-lo em três dias?!”.

21.Mas ele falava do templo do seu corpo 

Depois que ressurgiu dos mortos, seus discípulos lembra­ram-se destas palavras. 

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