Pensar a própria realidade é básico para traçar metas existenciais razoáveis. Por esse motivo muitas escolas psicoterápicas trabalham com o autoconhecimento como estratégia para a construção do sentido da vida. Sem esse conhecimento, o propósito de fazer o futuro torna-se um projeto alheio, distante do indivíduo e dificilmente capaz de levar à felicidade. Esta parece ser também a realidade de um povo, a julgar pelo que escrevem Gilberto Freire em Casa Grande e Senzala e Darcy Ribeiro em O Povo Brasileiro.
Ambas as obras, clássicos da antropologia
brasileira, são fundamentais como referências na construção de um auto retrato.
Ambas são muito estudadas, criticadas, debatidas. E é bom que seja mesmo assim,
pois pensar sobre si é um exercício dialético e que precisa ser constantemente
refeito.
Quando consideramos a extensa obra de Darcy
Ribeiro acima mencionada alguns aspectos chamam atenção. Há questões fundamentais
embora possamos discordar da forma como foram tratadas.
Logo de início um desses pontos fundamentais.
A referência ao nome Brasil como sendo anterior à descoberta. Falta incrementar
o que Darcy ali escreve, a experiência da descoberta e o encontro com belos
nativos que viviam num lugar de matas exuberantes e cheias de vida enchem o
imaginário lusitano com a ideia de um paraíso, podendo-se imaginar o que um europeu
daqueles dias podia entender da descrição teológica do jardim do Éden. Muitos
dos problemas e dificuldades que o próprio Darcy indica no livro ficariam mais
claros se considerássemos a distância entre os sonhos experimentados na
descoberta e a dura realidade de viver um território nos trópicos. Território
que estava longe de ser um paraíso, a mata atlântica limitava-se ao litoral, o
calor era altíssimo, as tempestades tropicais difíceis de conviver, o interior
era formado pelo sertão semi-árido em grandes extensões.
A tentativa de aculturação do indígena e a
escravidão negra foram momentos tristes da história brasileira, mas tanto a
empresa escravista como a empresa comunitária dos jesuítas com os índios,
acabaram aproximando grupos étnicos diferentes e promovendo intensa mestiçagem.
Essa mestiçagem não conseguiu superar o preconceito social, mas reduziu muito a
intolerância racial, de modo que não vemos episódios como o do fuzilamento
recente dos negros numa igreja americana por um jovem branco, nem o assassinato
cruel de dois jornalistas brancos por um negro nos Estados Unidos.
Por outro lado, ao destinar ao negro a tarefa
de trabalhar sem a chance de enriquecer a existência da escravidão dificultou a
incorporação do sistema liberal capitalista, que necessita do trabalho
contínuo, árduo e planejado como estratégia de enriquecimento. Os sonhos de
enriquecimento vêm, neste contexto, com a herança ou com a sorte nas loterias,
quando não da propina que enriquece maus funcionários públicos, maus políticos
e maus empresários, todos igualmente culpados do desvio de dinheiro nesta Terra
de Santa Cruz.
A dificuldade de ascensão social, a pouca
sensibilidade das elites para com as parcelas mais pobres da população, a
enorme distância econômica entre ricos e pobres (perversa concentração de
renda), a arcaica estrutura dos
latifúndios improdutivos, são problemas que decorrem desta história singular.
Alguns problemas são mais agudos numa região do país (o latifúndio não é tão
comum no sul), mas muitos deles estão em toda a parte como a distância entre os
mais ricos e pobres na nossa arcaica estrutura sócio-cultural.
Interessante o esforço de Darcy Ribeiro de
caracterizar as diferentes áreas do Brasil e mostrar suas diferenças: o Brasil
crioulo (que nasce do engenho açucareiro), o caboclo (da região amazônica), o
sertanejo (da ocupação agropastoril do interior do nordeste), o caipira
(formado pelas economias mineradora e do café) e o sulino (como predomínio da
população branca europeia), são áreas muito distintas.
O final do livro é uma apologia à felicidade,
de Aristóteles a Ortega y Gasset os filósofos dizem que o homem aspira ser
feliz, e sobretudo de esperança na superação desses problemas e na reinvenção
de um país novo e melhor.
Precisamos mesmo da esperança e da confiança
de nossos antropólogos Darcy Ribeiro e Gilberto Freyre, pois esperança e
confiança são alimentos que nutrem nossa
jornada para o futuro.