Sempre que a Humanidade se depara com um perigo de ameaça de
destruição global surge a questão: que culpa temos disso? Aconteceu com os
hebreus no Egito e na destruição de Jerusalém, junto com a diáspora. Na Europa
invadida pelos bárbaros. Nas inúmeras epidemias que assolaram a Humanidade. Na
era atual nas carnificinas das guerras, nos Campos de Concentração. Nos Apóstolos
apavorados na tempestade do Mar de Genesaré. E neste momento diante da pandemia
que nos ameaça destruir a todos? Pergunta-se: onde está Deus?
Quem é O culpado e por quê? Procura se pela Culpa Original.
Se a causa de todas as culpas é a primeira culpa da qual não
sou culpado porque então sou culpado? Se a culpa faz parte como componente da essencial
da Humanidade, como posso me desfazer. Mas por que sou culpado?
Contudo, embora não se tem dívida com alguém e nem tenha
causado algum desagrado a alguém, mesmo assim persiste a culpa, A culpa, a cima
de tudo não é uma razão, mas um sentimento. É algo do qual se quer livrar-se.
Apesar de alguém ter certeza de que pode ser feliz, não o é porque subsiste o
sentimento de culpa. Junto com a culpa vem o remorso que mata, por dentro, a
esperança de felicidade. Por mais que se queira explicar a si mesmo que não há
motivo de culpa, ela reaparece enchendo a alma. É como Caim que vaga pelas
florestas, corroído de remorso pela morte do irmão Abel. Neste caso há uma
causa, o assassinato do irmão. E quando sem causa se sente a culpa? Desde que o
homem teve consciência de si, sentiu-se culpado. Por que um pagão como Anaximandro diria que
não há culpa maior do que o de ter nascido? Por que Platão diria que a culpa é
por não conhecer a verdade? O cristianismo solucionou com o mistério ou mito do
pecado original. Assim se pode desfilar os grandes pensadores da humanidade
como Rousseau que encontrou a sociedade seu bode expiatório. Se não fosse a
sociedade o homem poderia ir ao encontro de seus desejos, satisfazer suas
paixões, entregar-se à felicidade da vida, sem culpa, se não fosse a sociedade.
O indivíduo é bom, não tem culpa. A sociedade é má, a culpada.
Nietzsche, na mesma linha, vê na sociedade não só
estratégias de controle, mas formas de poder. Há os que querem demonstrar que o
mundo não é como deveria ser. Eles dizem aos homens o que devem fazer, como se
portar, até mesmo ordenando-lhe agir contra a sua natureza. O próprio Deus
seria um desses pretensos idealizadores de felicidade. Mas todos estão mortos:
monarcas, nobres, inclusive Deus. Mas algo sobreviveu: o sentimento de culpa.
Já Freud tira Deus do céu e o acomoda no coração do homem.
Nele faz o papel de juiz, o Superego. Este impõe ao homem um código moral que
inevitavelmente é transgredido, engendrando o sentimento de culpa.
E nos filósofos da existência, como vêm a culpa. Para
Jaspers é uma situação limite, dela o homem não pode furtar-se. Heidegger vê na
culpa um modo de ser do ser-aí, uma atribuição substancial do ser humano. Em
última análise, em ambos a culpa é um trajeto inexorável. Tudo o que o homem
fizer, ele pode ter certeza que será culpado. Se fizer o bem, ou se fizer o
mal, ou mesmo se não fizer nada, sentir-se-á culpado. A culpa é a condição
humana. E o pior dos paradoxos da culpa: quanto menos culpado se é, mais culpa
se sente. Um santo se sente mais culpado que um assassino psicopata.
Entretanto, a culpa existencial é uma falsa culpa, ou culpa
contraditória. Se é culpado porque se é um ser-aí. E este ser-aí é um
fundamento do nada. Isto significa que ninguém o colocou aí. Não foi o
indivíduo o autor deste ser-aí, nem outro. Logo, ele é um ser aí produto do nada.
Como o nada dá origem a nada, logo ele, homem, não está aí. E sendo assim não
tem culpa de nada porque não é nada. Por isso o ser-aí não pode ser causa de
culpa e nem mesmo ser-aí.
Ou o homem é um ser-aí por si ou por outro. Evidentemente
ele não é por si, porque se fosse não teria se feito apenas um ser-aí. Logo,
ele é por outro, quer pela matéria, quer pela espiritualidade ou outra entidade
superior a ele. Mas o porquê de sentir-se culpado é de poder se arrepender. Mas
arrepender-se de quê? De ter aceito ou continuar aceitando ser apenas uma
existência. Qualquer outro ser do universo pode não arrepender-se, menos o
homem. Os demais seres não sabem que estão-aí. Somente o homem tem esta
consciência. Enquanto o homem continuar aceitando esta condição de existência
viverá se arrependendo e por isso se sente culpado. Se o homem pudesse se
livrar do arrependimento deixaria de sentir-se culpado. Mas para
desvencilhar-se do arrependimento da existência a única saída é livrar-se da
existência. Mas com certeza é preferível viver e sentir-se culpado do que
suicidar-se e livrar-se da culpa. Ele se arrepende de querer viver e por isso
se sente culpado perante Deus, perante seus semelhantes e perante o universo.
Se o homem como existência fosse imortal nunca se sentiria culpado. O
arrependimento da existência o faz culpado disso. Ou exista e se arrependa e
sinta-se culpado ou abandone a existência e livre-se do arrependimento e da
culpa.
Se partirmos da constatação de que existimos, de imediato
veremos a precariedade de nossa existência. Não conseguiremos recuar até o
instante de nossa consciência, de nossa interioridade que, iluminada, toma
consciência de si. Estamos suspensos, sem ser e com desejo de mendigos de
tê-lo. Quando ocorreu o acender de nossa consciência? Tudo se esvanece no
passado longínquo o qual não conseguimos identificar. Caminhamos sobre o Nada,
como o Mestre caminhava sobre as águas.
O que nos consola como reduto último é a Esperança. Entre o
Ser e o Nada, perigosamente suspenso sobre a Morte, o homem consegue viver
porque se recusa cortar o fio da Esperança. Se este for rompido, cairemos no
Nada. Os acenos das Angústias, do
Cuidado, da Náusea, na verdade, são apenas acenos do desespero, pois são formas
de cortejar o Nada, de quem pendula entre a Morte.
A Luz pode ser a metáfora da vida, enquanto a Noite é a da
Morte. O primeiro um ser-em-si e o segundo o não ser. Esta dualidade reflete-se
na gnosiologia, na relação entre sujeito e objeto. No ato do conhecimento, o
sujeito não só contempla o objeto, mas também o objetiva. A relação imediata
que surge é uma bipolaridade de eu- isto. Neste primeiro contato
sujeito-objeto, é estabelecida uma relação fria. O primeiro ignorando a
concretude do segundo e este reduzindo ao mínimo sua concretude. Dessa relação
surge uma metafísica materialista ou mesmo estruturalista. A relação
sujeito-objeto nos leva a renunciar ao conhecimento da Vida, do Homem e do
Espírito, pois há um sujeito diante de uma coisa e vice-versa. Será possível
outra relação? É possível, diz Soveral, desde que a relação que se estabeleça
seja de natureza Eu-Tu , Nós-Ele, Eu-Vós. Esta relação muda a natureza, pois em
vez de objetos, coisas, há relações de sujeitos intersubjetivos. Com essa
relação é possível captar a vida, o espírito e o Homem concreto. O existente
humano é o ser-em-si em trânsito, na busca do Ser-em-Si-para-Si.
Mas, faz sentido buscar algum sentido para algo que parece
sem sentido?