José Mauricio de Carvalho
Nossa vida diária encontra-se cheia de vazios de explicação racional. Convivemos com eles é inevitável. Quantas vezes nos deparamos com pessoas que encontram a cura para doenças terminais depois de um diagnóstico terrível, ou, ao contrário, morrem em situações banais. No primeiro caso milhares de outros casos parecidos levaram ao pior desfecho e no segundo quase todos se salvaram sem problema. Quantas vezes conseguimos realizar coisas extraordinárias que nem supúnhamos possível e outras não conseguimos realizar coisas banais, dessas que já havíamos feito inúmeras vezes. O nosso conhecimento está cheio de lacunas e nossas possibilidades na relação com o mundo não se restringem à explicações racionais fornecidas pela Ciência e pela Filosofia.
Porque nossa compreensão do mundo é limitada e a verdade fundante das outras (da Ciência, da Filosofia, da Religião) não se alcança de forma completa, filósofos como Ortega y Gasset nos mostraram que vivemos por crenças como inspiração de vida, isto é, a força daquelas ideias que não possuímos mas que, ao contrário, nos possuem. Somos delas, a elas entregamos o melhor que temos, nossa dedicação, nosso amor, nossa fidelidade, nossa esperança. Frequentemente elas se tornam o propósito de nossas vidas. Autores como Martin Heidegger nos mostram que uma vida não será humana se não tiver um propósito e Ortega que ele não se esgota na razão.
Homens como Viktor Frankl nos mostraram ainda mais. Que nossas crenças nos mantém saudáveis, melhor ainda quando ela se refere a Deus. Quantas vezes, nos relatou Viktor Frankl, em meio aos terríveis sofrimentos nos campos de concentração um simples pensar em algo distante hidratava a alma. Uma oração que levasse para longe dali e para perto de Deus ela enchia a vida de esperança. Uma prece que fizesse lembrar de um Deus capaz de inspirar o amor no sofrimento, a confiança noutra vida e a certeza de que no final de contas, em meio à miséria do mundo, justiça e bondade prevalecerão. Ou, ainda, de modo mais singelo, que a lembrança levasse para longe fisicamente dali, em direção a sua antiga casa, para a mesa do café quente, para o bolo quentinho da esposa, para a cama macia e a delícia de dormir em lençóis limpos depois de um banho quente, do abraço no neto amado, enfim para o convívio das pessoas queridas, para relações de amor enfim. Quantas vezes a razão de viver pode estar numa fé sobrenatural ou numa crença qualquer muito além das explicações da razão.
No dia a dia, a vida do homem é um que fazer constante. Nela um presente sem futuro não é outra coisa que a prisão num passado limitador, mas nossa existência traz a possibilidade de ser diferente do que já foi. Esse ser diferente na esperança e no esforço da renovação trazido pelo sentido ou busca. Sentido pode ser também a recuperação de um passado valioso e significativo, quando estamos diante da necessidade de dar alento a uma vida que está extinguindo. E o sentido é não somente preenchido por explicações sobre o mundo, mas pelo grande sentido de Frankl pelo que nos leva além do dia a dia, para a transcendência e talvez a Deus.
Deixar aberta a porta do entendimento aceitando que não sabemos tudo, não conseguimos resolver tudo, não realizamos tudo é prudente e razoável. Nossa razão não pode tudo e não resolve tudo. Porém, ela é nossa força, nossa parcimônia e capacidade de propor limites à irracionalidade, à maldade e a ignorância. Assim, o deixar a porta aberta para a transcendência não significa abrir-se à irracionalidade, o mergulhar na transcendência não equivale a aceitar a superficialidade, nem pode deixar de lado a pesquisa e o estudo sistemático dos fenômenos. Deixar as crenças serem guiadas pela fé irracional, nos conduzirá a lugares sombrios e lúgubres como o mostram vários momentos da história, na inquisição, nas guerras, no totalitarismo do nazifascismo e stalinismo no último século. Por isso nossa sociedade, quase sempre, evita tratar assuntos que apontam além do imediato, admitir o papel das crenças ou a importância dos aspectos transcendentes que embelezam e nutrem a vida, mas podem levar ao mal. Assim, que a abertura aos aspectos transcendentes, venham para nós junto com a pesquisa, com uma fé meditada, com boas possibilidades, que nos abra a porta do céu, mas não nos tire da terra firme representada pela razão e suas explicações.