No final do século XIX alcançava o auge
o preconceito e desconhecimento mútuo entre brasileiros e portugueses. No livro
O Brasil Mental (1898) de autoria de José
Pereira de Sampaio (Sampaio Bruno) tem-se uma ideia do desconhecimento mútuo reinante
naqueles dias.
Aquele foi um tempo impactado pelo
positivismo, que não separava o desenvolvimento espiritual dos povos e da
humanidade do estado social das sociedades. Assim, O Brasil Mental apresentará não somente o que se passa na
inteligência brasileira, mas revelará O
Brasil Social, ou melhor, tentará chegar ao primeiro pelo segundo. O pano
de fundo das preocupações de Bruno é a França e seus filósofos para quem se
voltam os olhares da população culta de Portugal.
O ponto de partida de semelhante
empreendimento é o desconhecimento da vida espiritual brasileira pelo português
culto que do Brasil somente conhece os
fatos econômicos, especialmente a exportação do café e a vitória militar
sobre Solano Lopes, governante do Paraguai. Esse desconhecimento era mútuo,
pois os intelectuais brasileiros também estavam pouco interessados no que se
passava em Portugal. E Sampaio Bruno exemplifica o desconhecimento lusitano
reproduzindo o assombro com que foi recebido em Portugal o livro de Silvio
Romero denominado Filosofia no Brasil.
Comentava-se entre gargalhadas nos bares e círculos sociais: "Com que
então: a Filosofia no Brasil? Hein? Esta nem o diabo lembra! Se fosse a carne
seca do Brasil, ou a feijoada do Brasil ... Mas, agora Filosofia no Brasil. Valha-nos Deus" E riam-se jubilosos da
sua suficiência" (p. 44).
A ignorância acrescenta Bruno era
alimentada pelo estereótipo do brasileiro tratado como comerciante grosseirão,
identificado com o português repatriado e pouco culto. A culpa é nossa, diz o autor
da obra, "pois que o tipo brasileiro, se não criamos, o deformamos
nós" (p. 48).
E a leitura interpretativa de Bruno,
apesar do louvável esforço para superar o preconceito reinante, está limitada
pela redução do universo mental brasileiro ao positivismo, que ele também
avaliou mal por conhecer pouco.
As considerações de Bruno sobre o
positivismo transitam entre os limites da doutrina e sua presença na
mentalidade brasileira, que ele atribuiu ao magistério de Benjamin Constant
Botelho de Magalhães, militar que "vulgarizou o positivismo entre os moços
estudantes" (p. 95).
A influência de Benjamin Constant, que
se aliara à escola francesa de Emile Littré no repúdio à religião da
humanidade, tinha como centro irradiador a Escola Militar, embora seu
magistério tenha ganhado projeção com a proclamação da República. No entanto,
nem entre os positivistas Botelho de Magalhães tinha reconhecimento
incontestável, havendo os que como Miguel de Lemos e Teixeira Mendes o
criticaram, mantendo-se fieis à síntese subjetiva de Augusto Comte. Esses
homens criticavam a República de Benjamin Constant e da elite militar por
considerarem-na democrática e metafísica. Por sua vez, as posições de Benjamin
Constant reservavam ao exército o papel constitucional de vanguarda do
positivismo, o que não tem correspondência na história do movimento e desses fatos
Bruno nada diz. Por outro lado, muitas das críticas que Bruno fazia ao
positivismo, entre as quais a inadequação da lei dos três estados, já fora
feita, muito antes por Luis Pereira Barreto.
Outro problema do livro de Bruno é que
além de não diferenciar as vertentes do positivismo brasileiro, não enxergou as
outras filosofias que inspiravam a renovação cultural do país iniciada na
década de setenta, vinte anos antes da publicação de seu livro. Nos anos
oitenta, nas escolas de direito, por exemplo, parcela substancial da
intelectualidade se alinhava ao culturalismo que teve notável impacto na vida
do país e cuja novidade Bruno não percebeu, embora tivesse conhecimento do
movimento e dos textos produzidos. E esse culturalismo de inspiração kantiana
rejeitava o monismo, reconstruía a Filosofia e antecipava várias teses que
somente foram discutidas pelos neokantianos alemães vinte anos depois de Tobias
Barreto ter divulgado suas teses. Tobias deu-se conta de o que havia de
essencialmente humano não podia ser reduzido à coisa natural e nem podia objeto
da ciência, diferenciando o homem enquanto objeto da ciência e enquanto
possuidor de liberdade e de inspiração moral.
Se o livro de Sampaio Bruno aponta a
ignorância mútua de brasileiros e portugueses sobre a vida mental dos seus
países, ele próprio não escapa deste desconhecimento, suas preocupações abrem o
caminho para a redescoberta mútua que ainda está longe de ser completada mais
de um século depois. Esse é um desafio apenas iniciado com os esforços do Instituto
de Filosofia Luso-Brasileiro nos últimos trinta anos. É neste esforço que se
organiza o XI Colóquio Antero de Quental dedicado ao estudo da filosofia
jurídica luso-brasileira.