sexta-feira, 1 de março de 2024

judaísmo evangélico. José Mauricio de Carvalho





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Há cerca de quinze anos algumas igrejas evangélicas fizeram uma conversão em direção ao Primeiro ou Antigo Testamento. Para a teologia cristã isso é algo inusitado não porque os dois testamentos não tragam a revelação da mesma fé, mas porque o Profeta de Nazaré, cujos ensinamentos são a base do Segundo Testamento, não é um profeta qualquer, mas o próprio Filho de Deus. Nessa condição e sendo Aquele para quem todas as coisas foram feitas, coube-lhe proceder os ajustes, aprofundamentos e, sobretudo, atualizações dos ensinamentos contidos no Primeiro Testamento escrito em mil anos de História. Portanto, para os cristãos, a direção é sempre do Primeiro para o Segundo Testamento, pois cabe ao Segundo esclarecer o Primeiro.

Assim, o inusitado movimento merece um esforço de compreensão. Embora seja um fenômeno complexo e que envolve certamente outros aspectos, parece que duas razões podem explicar esse movimento teologicamente inesperado e inapropriado. A primeira tem a ver com os tempos que vivemos. Autores como Paul Valéry e o sociólogo Zygmunt Bauman, mostraram que a sociedade contemporânea perdeu suas referências axiológicas e se tornou um tempo onde não se consegue herdar referências especialmente éticas e ficou a cada um a tarefa de conduzir, por sua conta e risco, sua existência. Tarefa que para a grande maioria é complexa e eles não conseguem resolver. Bauman diz, de forma metafórica, que a vida nas últimas décadas tornou-se líquida e o mundo deixou de ser um lugar acolhedor para peregrinos. O peregrino é aquele que sai de um lugar sabendo para onde está indo, mas nosso tempo não permite mais isso. O mundo hoje pode ser comparado a um deserto como ilustração de um lugar sem nenhuma estabilidade. No deserto, as pegadas se apagam com facilidade, os ventos mudam a paisagem, tudo fica diferente rapidamente. O mundo das coisas duráveis e estáveis ficou para trás. Ele foi substituído por um outro, um lugar (Vida em Fragmentos, sobre a ética pós-moderna, Rio de Janeiro: Zahar, 2011p. 121): “de objetos descartáveis projetados para sua imediata obsolescência. Num mundo assim as identidades podem ser adotadas e descartadas com uma mudança de costume.” Assim mudam amores e crenças.

Um tal mundo não tem estabilidade ou consistência, nada mais está realmente assegurado e os costumes mudam todos os dias. Nesse mundo em mudança não se jura lealdade a nada ou ninguém. Em outras palavras, o presente agora experimentado foi separado do passado e do futuro, vive-se apenas ele. Assim, um livro que contém uma rigorosa pauta de costumes serve aos propósitos conservadores porque pode ser usado para justificar não propriamente condutas morais atualizadas para nossos dias, mas uma forma de viver que era própria de outras sociedades ou tempos que são magicamente recuperadas e justificadas com o sagrado.

Além da pauta conservadora há nesse movimento em direção ao Primeiro Testamento uma outra justificação nada cristã. Trata-se de um empoderamento da classe sacerdotal compreensível apenas num povo em organização como os judeus que saíram do Egito, sem vida social arrumada, autoridades leigas etc. Enfim, eles tinham uma estruturação teológica da vida social onde a religião era a guia da sociedade e os líderes religiosos (Moisés é o protótipo) eram também os líderes civis e militares, cabendo-lhes ditar o ritmo da vida. Isso lhes conferia um poder usado para cobrança de taxas e dízimos para assegurar o culto. Com o tempo o poder sacerdotal foi usado para controlar a sociedade e enriquecer essa classe a ponto de Jesus lhes condenar abertamente em diversas oportunidades. Isso não porque não se possa fazer oferendas para sustentar o culto, mas porque aqueles religiosos passaram a extorquir a sociedade pedindo ofertas muito além do necessário para essa finalidade. E olha que naquele momento cabia aos sacerdotes várias responsabilidades que não estão entre seus atributos na sociedade atual, como a de declarar alguém livre de doenças e em condições de retornar ao convívio social. Esse poder agrada especialmente alguns pastores que usam dessas igrejas para enriquecer e fazer fortuna, claramente na direção contrária aos ensinamentos de Jesus de Nazaré. Assim, é melhor se afastar do Filho de Deus e recuperar textos de um momento em que o povo de Israel andava nômade pelo deserto ou, pelo menos, carecia de uma organização social mais consolidada.

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