Chega
aos cinemas nacionais filme sobre a vida da filósofa judia Hannah Arendt
(1906-1975). A película não faz o relato biográfico de toda a vida, mas do
momento no qual ela se defronta com o julgamento do oficial nazista Eichemann. E
a história começa a ser narrada por ocasião da captura do criminoso pelo
serviço secreto israelense. Vamos encontrar a filósofa como professora
universitária, que se divide entre os escritos e os compromissos didáticos. Já
famosa desde a publicação de As origens
do totalitarismo (1951), ela se oferece a um periódico americano, para
acompanhar, em Israel, e como correspondente, o julgamento do nazista.
Enquanto
se prepara para a viagem entre encontros com amigos judeus emigrados e as aulas
da universidade, Hannah mergulha nas lembranças da juventude quando foi feita
prisioneira na França. Suas recordações vão mais atrás quando fora, ainda na
Alemanha, aluna de um dos maiores filósofos do século passado: Martin
Heidegger. As lembranças de Heidegger adensam essa viagem a um passado
perturbador, pois o professor não só mexera com seu modo de entender as coisas,
mas fora um amor da juventude. Um romance que não resistiu à aproximação de
Heidegger com o nazismo e as concessões que ele fez à Hitler para permanecer
Reitor. Trata-se de triste episódio da vida de Heidegger, que, mais tarde,
rompeu com o nazismo. A decepção de Hannah com o fato não foi superada, nem
após a guerra, quando o filósofo tentou explicar suas razões.
Retornando
ao eixo central da narrativa encontramos a filósofa viajando para Jerusalém e
ali acompanhando o julgamento de Eichemann. E, naquele momento, ela se perturba
com as posições do oficial nazista. Ela se acostumara a pensar o mal como fruto
de paixões, de tal modo que o mal abominável, ou um crime enorme como o
extermínio de milhões de judeus na Segunda Guerra Mundial, devia se inspirar no
gosto de fazer o mal. No entanto, não foi esse tipo de homem que ela encontrou
no banco dos réus. Eichemann era um burocrata, cumpridor dos deveres e do
juramento de lealdade a seus superiores, um sujeito assustadoramente normal.
Nesse problema ela concentra a atenção. No retorno a Nova York, continua a
acompanhar o julgamento por documentos remetidos de Jerusalém. A filósofa
avalia que estava diante de um novo tipo de mal, nunca antes encontrado na
história da humanidade. Um mal terrível que destrói a vida pessoal, a
capacidade de pensar e avaliar as coisas. Ela se indaga se a incapacidade de
pensar é o que mantém o indivíduo nesta condição e se é isso que o torna
cúmplice de atrocidades sem se sentir culpado, sem se preocupar com o resultado
de suas ações. Os artigos publicados foram reunidos no livro Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a
banalidade do mal. Ali ela lembra que Eichmann disse à corte que se guiou
pelo imperativo categórico de Kant. No entanto, o oficial nazista não olhava
todos os homens como pertencentes à mesma humanidade, naquilo que Kant
denominou na Crítica do Juízo de mentalidade alargada. Ele
não obedecia apenas as ordens, mas a própria lei moral do modo como a entendia
com suas limitações. Sem reconhecer a humanidade comum dos homens não entendeu
Kant. A filósofa denomina banalidade do mal o resultado da obediência
irrefletida a uma ordem, aspecto que em si é extrínseco ao processo a que
estava sendo submetido o oficial, pois a questão ia além das doutrinas
jurídicas mobilizadas pela defesa e acusação no que abrange a licitude do
próprio julgamento e a responsabilidade do acusado pelos crimes que lhe eram
imputados. É por isso que ela relaciona a banalidade do mal à incapacidade de
pensar.
No
entanto, Hannah também se impressionou com o fato de que lideranças judias
cooperaram com os nazistas na localização e identificação dos judeus
capturados. E foi isso que levou ao extermínio de milhões. Hannah menciona o
fato de passagem. No entanto, o episódio magoou os judeus na América e as
autoridades do Estado de Israel. E ela foi considerada uma judia ruim e sem
amor por seu povo. Tanto porque sua análise filosófica aparentemente diminuía a
culpa pessoal do nazista, quanto porque tornava os judeus corresponsáveis pelo
triste episódio. Foram muitas as cartas que recebeu e as ameaças que sofreu por
conta disso.
Independente
da polêmica que se torna o assunto central do final do filme, vemos a filósofa
explicar seus pontos de vista e comprometer-se com a verdade. Em nome dela enfrenta e perde os amigos de
toda a vida. Sua existência, a partir de então, destina-se a entender essa nova
face do mal. O mal produzido pelo totalitarismo. Um mal que Karl Jaspers, um
dos maiores representantes do existencialismo alemão, soube trazer da
experiência totalitária para a vida pós-guerra: colocando-o na irreflexão.
Trata-se de se perder na rotina e compromissos diários de uma vida sem sentido.
No caso de Jaspers a irreflexão tinha significado ético, porque o sentido é não
só projeto intelectual, uma forma de pensar, mas é um portar-se guiado pelas
exigências éticas tomadas como exigência absoluta, uma ampliação do imperativo
categórico de Kant.